O
ESVAZIAMENTO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO E AS NOVAS
TENDÊNCIAS DE PENSAMENTO
Pretende-se refletir acerca do momento histórico vivenciado
no Brasil contemporâneo, pensando fatos e discursos sociais que tencionam-se e rearticulam-se
a todo instante. A desconstrução de acontecimentos históricos como a ditadura, os
pedidos de volta da Monarquia ou da intervenção militar, a refutação de fatos
científicos como a eficácia das vacinas ou a construção e a tentativa de
legitimação de discursos como o da ideologia de gênero, são alguns dos exemplos
que perseguimos nesta breve reflexão, na tentativa de compreender as características
do processo de esvaziamento de nossa consciência histórica atual. Para isso,
destacamos algumas notícias divulgadas nos últimos anos na mídia online, que
chamaram a atenção por versarem a respeito de novas tendências de pensamento,
inclusive daqueles que optam pela refutação de teorias legitimadas, como as
teorias médicas e físicas. Essas tendências porém, trazem de volta antigos
fantasmas da política social brasileira, repletos de influência dos valores
cristãos de regência da vida particular, assim como discursos de controle e
dominação.
Buscamos utilizar
notícias vinculadas a diferentes meios de comunicação brasileiros como
dispositivos para pensar os acontecimentos recentes e o ensino de História no
Brasil, além de suas consequências no pensamento médio populacional. Designamos
como um método “teórico-jornalístico”, devido a utilização de notícias como
meio de discussão acerca dos temas, problematizando os discursos e buscando
rever em sua interioridade a influência do modelo de racionalidade e do ensino
da disciplina de História no Brasil.
O esvaziamento da consciência
histórica brasileira
“Estamos diante portanto, de uma seleção histórica de uma memória feita
de lembranças, mas também de muito esquecimento” (SCHWARCZ, 2009, p. 03).
Nos
deparamos atualmente com uma série de notícias e discursos que demonstram fatos
históricos brasileiros deturpados ou esvaziados de seus sentidos, tendo como
consequência a formação de um pensamento médio comum que ignora e questiona a
veracidade dos acontecimentos e das teorias científicas. Como exemplo disso,
podemos evidenciar o crescente Movimento Monarquista, que defende o
reestabelecimento do Império.
Herdeiros
dos dois imperadores do Brasil (Pedro I e Pedro II), os Orleans e Bragança,
justificam os desvios éticos ocorridos com os políticos brasileiros e os
escândalos de corrupção como fundamentos para o movimento. Em redes sociais, o
grupo conta com mais de 13 mil seguidores, além de estarem formatando grupos em
vários Estados do país.
A Monarquia
no Brasil se deu entre 1822 e 1889, passando por diversas fases históricas,
dando continuidade direta a linhagem real portuguesa de D. João VI. A
característica política primária deste período é a centralização do poder, tendo
como súditos do imperador os imigrantes europeus, os índios nativos, os
africanos e afrodescendentes, ou seja, classes populares e trabalhadores.
Diversas foram as revoltas regionais deste período, à exemplo da Cabanagem
(1835-1840) no Pará, da Sabinada (1837-1838) na Bahia, da Balaiada (1838-1840)
no Maranhão, da Guerra dos Farrapos (1835-1845) no Rio Grande do Sul, todos demonstrando
a resistência da população ao sistema monárquico, mas resultando em milhares de
mortes de civis. Este período ficou marcado também pela estruturação das Forças
Armadas Brasileiras, sempre utilizada para defender os interesses do Estado,
não do povo.
A ausência
de distinção público/privado e os traços de clientelismo estruturaram o modelo
de colonização no Brasil, o que nos faz expandir o entendimento acerca dos
momentos atuais, entendendo-os não como fatos isolados e novos, que se
iniciaram a poucos anos por um partido ou agente político localizado. Além
disso, a herança de país escravocrata já pressupõe uma dívida social imensa. O período
monárquico legitimou os privilégios e a manutenção da elite econômica do país
no poder, assim como tornou o controle social mais abrangente, pois envolvia-se
em questões religiosas ou morais.
Outro
preocupante movimento que tem ganhado espaço, inclusive dentro das escolas
brasileiras, é o da refutação do período histórico que compreende a Ditadura
Militar (1964-1985) e a solicitação de uma parcela da população por uma nova
intervenção militar no país. Durante 20 anos, o Brasil viveu a eliminação de
opositores, jornalistas, artistas, ou qualquer um chamado ‘subversivo’, como
política de Estado; o ambiente criado pela Ditadura era de repressão,
vigilância, tortura sistemática, prisões ilegais e desaparecimentos. Com o
falso aval de “leis” serviu-se do Estado para corromper instituições e
alimentar interesses próprios dos militares no poder.
Vários
aspectos contrários aos trabalhadores podem ser destacados no período da
Ditadura: falta de saneamento básico, a saúde precária e apenas para
trabalhadores formais, a falta de fiscalização das obras ou conselhos fiscais
do dinheiro público aplicado, e acima de tudo, a possibilidade de suspensão dos
direitos políticos de qualquer cidadão, por qualquer motivo encontrado pelo
regime. O livre-pensar não era uma opção e havia um rigoroso controle das
informações e das liberdades individuais, tendo como prioridade da educação a
transmissão da ideologia dominante. Para os que evocam o desenvolvimento do
país neste período como justificativa da crença em um novo período militar,
relembramos o aumento da dívida externa que revelou-se impagável na primeira
década da redemocratização.
O que torna
o tema tão atual e assustador é a possibilidade dos atos antidemocráticos da
ditadura se tornarem uma realidade, como já vemos em gravíssimo precedentes
abertos na história recente. Os conhecimentos históricos produzidos no período
de 21 anos, parecem não ter sido colocados em prática no ensino de História, na
consciência política dos brasileiros, no reconhecimento dos militares, das
Forças Armadas e de muitas instituições que apoiaram o regime ditatorial, como
algozes e financiadores da morte de milhares de civis. Impeachment de
presidente eleita por motivo fútil e incomprovado, saudações a torturadores e
estupradores em pleno Congresso Nacional, eleições pautadas em notícias falsas
espalhadas na internet e manipulação da informação e mídia, resgate de valores
morais e de dominação do corpo e do pensamento, enfraquecimento dos direitos
dos trabalhadores, censura a arte e ao jornalismo e utilização das leis para
benefício próprio e de terceiros, são alguns dos tons da política brasileira
contemporânea.
Outra
falácia que aflorou sob forma de discurso político discorre acerca da
“Ideologia de Gênero”: um enunciado configurado para o conservador pensamento
biologizante acerca do gênero. Com a emergência de novos paradigmas acerca da
construção do eu e a proposição de papéis sexuais mais flexíveis, além da reflexão
acerca da violência contra a comunidade LGBTQ crescente no país, teve como
resposta a perigosa junção entre o pensamento religioso conservador e as
políticas educacionais. A interferência e o alvo na desconstrução de direitos
humanos materializou-se no discurso da ideologia de gênero, numa tentativa de
desqualificação do movimento, de suas necessidades de reconhecimento e de
defesa.
O
compreensível neste discurso é uma tentativa de manutenção dos dois horizontes
tradicionais: a heteronormatividade e o patriarcado. A tentativa de manutenção
já seria esperada, tendo em vista o peso ocupado por essas formas hegemônicas
de existência. A expansão da perspectiva de gênero porém, não simboliza a
possibilidade de destruição das famílias, mas a possibilidade de desconstrução
delas, ampliação de seus modelos, inclusão de suas matrizes, que não são
patriarcais e tradicionais na realidade.
A crença na
ideologia de gênero é mais um arcabouço ilusório, enunciado pejorativo,
distorção de fatos históricos, tentativa de esvaziamento de consciência e do
pensamento médio comum, dentre muitas outras disseminadas no Brasil
Contemporâneo. O que necessitamos perguntar é onde o Ensino de História
situa-se neste cenário, onde resiste, onde se desfaz.
História efetiva e a desconstrução
dos discursos científicos
“Na raiz do
que conhecemos e do que somos, não há absolutamente a verdade e o ser, mas a
exterioridade do acidente” (FOUCAULT, 2005, p. 279).
Em
consonância ao nosso modo metafísico de pensar, construído no modelo de
pensamento Ocidental, tendemos a enxergar a História como uma disciplina da
busca pela verdade, dos fatos essenciais, das datas específicas, da origem.
Negligencia-se para isso, as diferenças e as inconsistências dos acontecimentos
em detrimento de um todo, buscando uma lógica, algo que se estabeleça enquanto
fato histórico. Nietzsche (2009) busca entender a História não através da busca
por essências, mas como um plano imanente de forças, plano de dominados e
dominadores, em constante embate e tentativas de diferenciação. Impõe-se
enquanto um ritual de progressão não-linear da humanidade, que vai constituindo
valores, interpretando e apoderando-se dos sistemas de regras.
“A história
‘efetiva’ faz surgir o acontecimento no que ele pode ter de único e agudo.
Acontecimento: é preciso entendê-lo não como uma decisão, um tratado, um reino
ou uma batalha, mas como uma relação de forças que se inverte, um poder
confiscado, um vocabulário retomado e voltado contra seus utilizadores, uma
dominação que se enfraquece, se amplia e se envenena e uma outra que faz sua
entrada, mascarada. As forças que estão jogo na história não obedecem nem a uma
destinação nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas não se manifestam
como as formas sucessivas de uma intenção primordial: tampouco têm a aparência
de um resultado. Elas surgem sempre no aleatório do acontecimento” (FOUCAULT, 2005,
p. 286).
A história
‘efetiva’, aquela citada por Foucault (2005), é a história do acontecimento,
que busca os interstícios dos fatos, sempre entendendo o olhar perspectivo
sobre o plural que habita o acaso. Não só a História vem desconstruindo os
ideais modernos ao qual veio sendo submetida, na consideração da ciência e do
racional como instância absoluta do pensamento; teorias fortemente legitimadas
no imaginário coletivo – como as médicas e as físicas – também vem sendo
desconstruídas e postas em dúvida. Não se julga aqui a negatividade ou positividade
do fato, apenas compreendem-se os questionamentos como parte dos sinais que
habitam os novos tempos.
Como
exemplo, ressaltamos o Movimento Antivacina, pessoas partidárias da não
imunização de crianças. Essa vertente cresce em todo mundo e forma
significativos grupos no Brasil, fazendo a cobertura vacinal despencar
drasticamente nos últimos anos no país. O movimento, antes influenciado por
religiosos ou opositores à indústria farmacêutica, hoje ganha adeptos cada vez
mais jovens e ligados as questões “naturais”, negando a medicina alopática. O
movimento cresceu a partir de relatórios e estudos questionáveis e de notícias
falsas que circulam nas redes sociais, em consonância com a profunda
desconfiança da população perante seus governantes. Um relatório da Organização
Mundial de Saúde incluiu o Movimento Antivacina como um dos dez maiores riscos
à saúde da população em todo mundo, em uma lista que inclui os vírus Ebola, o
HIV, a Zika e a dengue. O movimento ameaça reverter quadros de progresso no
combate a doenças erradicadas e evitáveis, que salvam de 2 a 3 milhões de
pessoas por ano.
Outro
questionamento teórico quase inimaginável, mas que já ganha adeptos e
seguidores em vários lugares do mundo, é o Movimento Terraplanista. Este
movimento visa questionar todas as Leis de Kepler, que datam o século XV e
fundamentam a Física dos Astros, além do próprio Heliocentrismo de Copérnico,
as leis da gravidade de Newton, etc. Fundada nos EUA, a “Flat Earth Society”
(Sociedade da Terra Plana) surge na metade do século XX, mas ganha força no ano
de 2009, com novos membros e novas teorias contestadoras. Baseiam-se,
basicamente, em textos conspiratórios, que incluem o envolvimento da maçonaria
e dos Illuminatis, questionando conceitos legitimados na ciência por mais de 2
mil anos. Recentemente, a Conferência Internacional da Terra Plana (FEIC, sigla
inglês) anunciou um cruzeiro com destino aos “limites da terra”, que acreditam
ser um imenso muro de gelo, a Antártida, que nos separaria do “exterior”.
Esses dois exemplos ilustram a onda dos
discursos anticientíficos emergentes na Contemporaneidade, que são extravasados
pela democratização da mídia, que ao mesmo tempo que amplia o acesso a
informação, alimenta raciocínios motivados pelos “achismos” e pelas percepções
pessoais das situações.
O equívoco
porém, demonstra-se proveniente da falha na transmissão do pensamento
científico, seus processos de investigação e errâncias, suas aplicações na vida
cotidiana. A ciência, desde sua primeira iniciativa, foi rechaçada por motivos
político-ideológicos e religiosos, pois contestou diretamente grupos
hegemônicos no poder. Ao mesmo tempo, em seu processo legitimador cria novas
hegemonias, novos discursos e enunciados em formato de verdades estabelecidas. Esses
polos de força em constante luta resultaram nos dilemas que vivemos na
Contemporaneidade. A política pós-factual configura-se como um novo modelo de
autoritarismo nacionalista, que nega as evidências científicas, na maioria das
vezes, em nome de uma ideologia econômica ou de mercado – isso também se liga
as transformações do sistema capitalista.
“Em si
mesmas, as regras são vazias, violentas, não finalizadas; são feitas para servir
a isto ou aquilo; elas podem ser burladas ao sabor das vontades de uns ou de
outros. O grande jogo da história será de quem se apossar das regras, de quem
tomar o lugar daqueles que a utilizam, de quem se disfarçar para pervertê-las,
utilizá-las pelo avesso e voltá-las contra aqueles que as tinham imposto; de
quem, introduzindo-se no complexo aparelho, o fará funcionar de tal forma que
os dominadores se encontrarão dominados por suas próprias regras” (FOUCAULT, 2005,
p. 283-284).
A ciência,
portanto, não é partidária, mas é eminentemente política. O equilíbrio entre as
instâncias do absolutismo e da negação necessita ser estimulado por meio da reflexão
crítica e compreensiva dos fatos, tendo como agentes diretos os educadores, os
jornalistas, os intelectuais comprometidos com a investigação, não da ordem das
essências, mas das pluralidades. Novas discussões éticas e morais são
necessárias, desvelando os interesses e as vicissitudes,
na articulação do corpo/homem com a história. O esvaziamento da consciência
histórica do pensamento médio brasileiro serve a interesses que devem ser
expostos, para que se gerem rearticulações e resistências.
REFERÊNCIAS
Juliana
S. Monteiro Vieira: Doutoranda em Educação - Universidade
Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Mestre em Educação (PPED/Unit); Graduada em
Psicologia (UNIT/2014). Colaboradora dos grupos: GPHEN/CNPQ/UNIT e GPECS/CNPQ/UFS.
Bolsista de Doutorado da FAPITEC/SE.
Lucas
de Oliveira Carvalho: Mestrando em Educação – Universidade
Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Graduado em História (UNIT/2010). Colaborador
do GPECS/CNPQ-UFS. Bolsista de Mestrado CAPES.
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SCHWARCZ, Lilia. De olho em d. Pedro II e seu reino tropical. São Paulo: Editora
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Como colocar em pratica dentro da sociedade brasileira e dentro das escolas está produção historiográfica produzida durante os anos posteriores ao fim do regime de exceção é também a produção feita sobre o regime monárquico. Os profissionais da área se dedicaram durante longos períodos com todo rigor cientifico historiográfico para tal produção, como os educadores podem-se utilizar esse material histórico produzido para combater o revisionismo histórico que muito vem sendo aceitado pela sociedade brasileira como uma verdade, cada vez mais o ensino critico com embasamento vem sendo atacado como uma doutrinação por movimentos como escola sem partido, quais seriam os caminhos para contornar essa situação de esvaziamento da consciência histórica no Brasil ?
ResponderExcluirLucas gomes da Silva Nascimento
ExcluirOlá,
ResponderExcluirParabéns e obrigado por compartilhar desta comunicação , que porventura apresenta uma realidade vivenciado por muitos educadores nas salas de aula da atualidade.
Nós professores de História estamos preparados para discutirmos em sala de aula, os aspectos conceituais, teóricos e metodológicos que envolvem os diversos conteúdos e conhecimentos repassados pela nossa disciplina. Debater as mudanças e permanências, os movimentos relacionados aos progressos do nosso campo de conhecimento , geralmente com um público que ainda não compreende a real importância dos estudos históricos para a sociedade, já é algo que apresenta uma gama de dificuldades no cotidiano escolar.
Atualmente vivenciamos um aumento constante deste tipo de "ataques" ao conhecimento histórico vindo principalmente das redes sociais e do Youtube, este último por sinal era considerado um excelente aliado no ensino de maneira geral.
Desde o fenômeno dos youtubers revisionistas que buscam monetizar as suas contas e atingir milhares de likes, aos "bots" e propagadores de Fakenews nas eleições estadunidense e recentemente aqui no Brasil, o sistema político mundial, já percebeu que as próximas eleições do século XXI, serão na maior parte decidida no mundo virtual. E nós professores e também eternos estudantes da História entramos num território nebuloso, pois muitos ainda desconhecem quais as estratégias e rumos devemos tomar frente ao ato de educar nesta nova realidade.
A pergunta que eu faço aos caros colegas é como podemos enfrentar este nova realidade repleta de mudanças de paradigmas científicos e também morais, pautadas nos "achismos" que atualmente encontramos, principalmente na educação fundamental e média, aonde os educandos na grande maioria não possuem o conhecimento necessário para filtrar tais informações?
Wander da Silva mendes
Olá Juliana!
ResponderExcluirComo podemos combater as teses negacionistas, que tentam negar coisas que gritantemente a história comprova? Visto que ultimamente, vem sendo defendida com veemência não existência da Ditadura Militar em nosso país, por exemplo.
Ayrton Matheus da Silva Nascimento