HISTÓRIA E LITERATURA: UMA BREVE DISCUSSÃO SOBRE A
UTILIZAÇÃO DE UM CONTO NO ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL
A
partir de discussões do uso da Literatura no ensino de História, esta
comunicação analisa a possibilidade da utilização do conto “São Gonçalo do Abaeté (1968) ”, da
escritora mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993), no ensino de História Local.
O
conto supracitado retrata o período de transição de distrito a cidade do
município mineiro de São Gonçalo do Abaeté-MG, terra natal da escritora. Dessa
forma, é possível abrir discussões não só a respeito da história local, mas
também a respeito de como era a vida nessa pequena cidade do interior mineiro.
No
conto São Gonçalo do Abaeté, publicado
primeiramente em 24 de abril de 1965 no Jornal Correio da Manhã, e segundamente no livro “o sofredor do ver (1968) ”, a escritora rememora o período em que
morava em sua terra natal, retratando de forma detalhada o processo de emancipação
político-administrativa da localidade. Diante disso, é possível analisar o
conto utilizando-se da vertente historiográfica que discorre sobre a história
local, pois a “História
local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto nível
de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma ideia muito mais imediata
do passado” (SAMUEL, 1990, p. 220).
Pode-se
utilizar também a vertente que destaca o diálogo entre a história e a literatura.
Um dos precursores em pesquisas de aproximações entre essas duas áreas dos
saberes foi o historiador estadunidense Hayden White, 1928-2018, que, ao
publicar o livro intitulado “Meta-História:
a imaginação histórica do século XIX” define que existem quatro tropos, que
servem para “a análise da linguagem poética, ou figurada: metáfora, metonímia,
sinédoque e ironia” (WHITE, 1995, p. 46). Diante desse fato, White define que o
discurso histórico está centrado em uma narrativa literária. Além disso,
“com relação à literatura tipo de
fonte escolhida para a proposta, sua conversão em fonte histórica efetivou-se
dentro de uma mudança de enfoque do historiador, interessado em compreender o
universo mental de homens e mulheres. O estabelecimento deste diálogo foi uma
tarefa árdua que implicou em um amplo questionamento das concepções das
correntes historiográficas resultando com que nas últimas décadas a literatura
fosse vista pelo historiador como material propenso a diversas leituras, pela
sua riqueza de significados para o universo cultural, dos valores sociais e
experiências dos homens e mulheres no tempo” (CORREIA, 2012, p. 192).
No
início do conto, a escritora descreve que “[p]lantou-se uma casa. Grave, um
padre traçou um destino: cidade” (CANÇADO, 2015, p. 67). O padre em questão era
João de Almeida Mattos, que, além de responsável por representar a religião
católica naquela localidade, também foi um dos primeiros moradores, e irmão do
primeiro prefeito, Messias Mattos. Ressalta-se que padre João Mattos era
também conhecido na cidade como um coronel, uma vez que possuía uma grande
quantidade de terras nas redondezas.
Imagem 1:
Padre João de Almeida Mattos.
Fonte:Monografia
de Fernando Borges.
Em
outra descrição sobre o município, Maura Lopes Cançado (1965, p. 68) discorre“[s]ua
nudez não lhe permitindo vida mais íntima, os habitantes expostos, talvez por
isto sadios – gente que gosta muito de cantar. Pois jovem e pequena. Não
oficialmente cidade, São Gonçalo passou a ter a sua bandinha”. A banda se chamava
Santa Cecília, e era formada por moradores do distrito, e também por um maestro
da cidade vizinha de Patos de Minas, que foi contratado pelo prefeito.
Imagem 2:
Banda de Música Santa Cecília.
Fonte:
Livro São Gonçalo do Abaeté e sua gente.
Cançado (2015, p. 68) descreve a
cidade como sendo
“[s]em princípio nem fim. Vista de
longe brilhava incrustada na campina, em sua marcha lenta e anônima para o
progresso. Ou, princípio era o alto do cruzeiro, de onde parecia nascer. A cruz
iniciava a marcha. Desse ponto descia reverente a rua principal, espinha dorsal
da cidade. Terra branca, água clara: os olhos de prata dos habitantes
perdiam-se nos regos, líquidos. A falta de número nas casas jamais dificultou a
vida daquela gente”.
A
cruz destacada encontrava-se no alto de um morro, onde, na atualidade,
encontra-se a capela de Nossa Senhora das Dores. A rua principal pela autora
destacada é hoje a Avenida Padre João Mattos, sendo ainda nos dias atuais a
principal via da cidade. Os regos de água clara não existem mais, pois foram
desativados após a instalação da Companhia de
Saneamento de Minas Gerais (Copasa) na cidade.
Em
relação àemancipação político-administrativa do município, escreveu Cançado
(2015, p. 72) que
“[d]e distrito São Gonçalo surpreendeu,
conquistando o direito precoce de ser chamada cidade. (...) Fundação da
Prefeitura, Câmara dos Vereadores, tanta coisa, meu Deus. (Ouviu-se essa frase
reiteradas vezes durante o período da transição)”.
Após 21 anos como distrito de Tiros-MG, São
Gonçalo do Abaeté conseguiu a sua emancipação. De acordo com Brandão (1993,
p.112):
“(...)
era governador do estado de Minas Gerais o Dr. Benedito Valadares Ribeiro que, atendendo
aos pedidos da população, fez o seu Decreto-Lei n. 1058, de 31 de dezembro de
1943, criando o município de São Gonçalo do Abaeté”.
Sobre
a vida social é revelado que “[d]o entardecer até a noite, no coreto da igreja
– a igreja foi uma das primeiras e principais instituições da cidade – a música
vibrava quente, nos rostos que, ignorando para onde, tinham a sensação de em
breve se dirigirem para algum lugar” (CANÇADO, 2015, p. 68).
Imagem3:
Igreja de São Gonçalo do Abaeté, década de 1940.
Fonte:
Paróquia Imaculada Conceição – São Gonçalo do Abaeté – MG.
Mesmo
após se mudar de São Gonçalo do Abaeté, a escritora parecia ainda ter notícias da
localidade ao escrever que “[a]gora
São Gonçalo conta com pequeno ginásio, sede de clube, algumas estradas
rodoviárias, campo de aviação, bares descansados (...)” (CANÇADO, 2015, p. 73).
É
fundamental destacar que quando são utilizados fragmentos literários em uma
pesquisa biográfica ou histórica, é necessário um amplo debate sobre a história
e a ficção, já que as fronteiras entre essas duas áreas das humanidades estão
em constantes aproximações e distanciamentos entre o fato e a fantasia, o real
e o imaginário. Fazendo-se, segundo Santos (2003, p. 84), “necessária uma
relação dialógica entre o discurso histórico e o literário”.Não obstante, a
utilização da literatura na área da história é muito importante, pois além do
seu uso como fonte, ela também pode favorecer para que sejam estudados novos
temas, levantando-se teorias e métodos de abordagens para que, posteriormente,
seja feita a sua utilização em prática. Assim sendo, o
“uso das obras literárias como uma
linguagem alternativa no ensino de história representa as minúcias de uma
sociedade, sua leitura pode assumir o papel de uma narrativa histórica, e o
mais interessante, podemos abordar as distintas interpretações quando
vinculamos ao seu contexto histórico, observando o confronto dos dois tempos, aquele
na qual a obra foi escrita e o contexto que se insere o leitor. É importante
destacar que o uso da literatura procura despertar no alunado o interesse pela
leitura, e ainda, procura despertar sua individualidade como leitor,
respeitando as particularidades do seu tempo” (SOARES, 2011, p. 797).
Indubitavelmente,
pode-se concluir que, por meio do estudo do conto abordado
nesta comunicação, faz-se possível analisar e compreender diversas variáveis
que auxiliam em um maior (re) conhecimento da cidade em questão, o que resulta
na recomendação da obra em foco para ser trabalhada em sala de aula das escolas
do município. Nota-se, ainda, a viabilidade de utilizar-se da escrita da autora
para trabalhar em outras pesquisas que contemplem São Gonçalo do Abaeté como
tema.
REFERÊNCIAS:
Edivaldo
Rafael de Souza é Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de
Minas – UNIPAM; pós-graduado em Metodologia do Ensino de Sociologia pelo
Instituto Superior de Educação Ateneu - ISEAT; atualmente cursa pós-graduação
em Biblioteconomia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante – FAVENI. É também
professor regente de aulas de História da rede estadual de ensino do Estado de
Minas Gerais.
E-mail: edivaldorafael007@gmail.com
BORGES,
Fernando Antônio. João de Almeida Mattos:
um coronel de batina. Monografia de graduação em História, Centro Universitário
de Patos de Minas, 2005.
BRANDÃO, José da Silva.São
Gonçalo do Abaeté e sua gente. Belo Horizonte: AMG, 1993.
CANÇADO, Maura Lopes. O sofredor do ver.
2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CORREIA,
Janaína dos Santos. O uso da fonte
literária no ensino de história: diálogo com o romance “Úrsula” (final do
século XIX). Revista: História & Ensino, Londrina, v. 18, n. 2, p. 179-201,
jul./dez.2012. Disponível em:<https://moodle.ufsc.br/pluginfile.php/847814/mod_resource/content/1/O%20USO%20DA%20FONTE%20LITER%C3%81RIA%20NO%20ENSINO%20DE%20HIST%C3%93RIA.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2019.
SAMUEL,
Raphael. História Local e História
Oral.In: Revista Brasileira de História. P. 219-242. V.9, n. º 19, set.
1989/ fev. 1990.
SANTOS,
Roberto Carlos dos. Entre a história e a
ficção: diálogos, fronteiras, identidades. Revista Alpha, Patos de Minas -
MG, 4(4):76-94, nov. 2003.
SOARES,
Cristiane de Souza. As representações
literárias e o ensino de história: discutindo história pela literatura.
Anais do V colóquio de historia perspectivas históricas, 16,17 e 18 out 2011. Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Disponível
em:<http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/uploads/2013/11/5Col-p.795-800.pdf>. Acesso em: 4 jan. 2019.
WHITE,
Hayden. Meta-História: a imaginação
histórica do século XIX. Trad. José Laurênio de Melo. São Paulo: Edusp, 1995.
Conto “São Gonçalo do Abaeté” de Maura Lopes Cançado. Fonte: Arquivos do Jornal Correio da
Manhã. Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_07&PagFis=64024>. Acesso em: 4 jan. 2019.
Pode-se dizer que por meio da literatura ou mesmo um diário pessoal, a pessoa vai se perceber como sujeito histórico ?
ResponderExcluir- Firmo Daniel Lima Gonçalves
Pode-se se dizer que sim Daniel. Está não é bem a temática desta comunicação. Aqui é utilizado a literatura como fonte para o ensino de História local. Mas em relação a sua pergunta quando a abordagem entre o estudante e a História é mais próxima, ou seja, retratando algo que ele conhece ou até mesmo vive, a possibilidade do indivíduo obter principalmente uma consciência histórica pode ficar mais interessante. Obrigado pela pergunta.
ExcluirAtenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá Edivaldo! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirÉ de suma importância análises como esta, que trazem o diálogo interdisciplinar como o da história e literatura e propicia dar voz a história local.
Gostaria de saber se esse conto foi utilizado em sala de aula? e se sim, como este auxiliou na aprendizagem e no desenvolvimento da consciência histórica dos alunos?
Maria Elzita Alves Aragão
Maria Elzita obrigado pela leitura. Acredito que com o uso desse conto foi possível aguçar a imaginação dos estudantes, principalmente ao imaginar como era a cidade durante esse período, a partir daí com a utilização de outras fontes históricas foi possível uma nova forma de aprendizado, não utilizando apenas aquilo que estão em livros, ou apenas o estudo da história de um local distante. Acredito que a história local seja muito importante nesse sentido. De maneira que, é essencial a construção dessa consciência histórica.
ExcluirAbraços, Edivaldo Rafael de Souza.
Prezado Edivaldo.
ResponderExcluirMuita interessante a sua proposta do uso do conto como material educativo e a contextualização histórica.
Como citado, por mais de uma vez, o conto trata da terra natal da escritora. Assim, é possível observar marcas de afetividade? Seria possível compreender a identificação da esciriesc com a cidade?
Também, aproveito para perguntar se a obra é de fácil acesso.
Ass.: Lucas Santos
Obrigado pela pergunta Lucas. Maura com certeza demonstra em sua escrita afetividade pela cidade em questão; mas também algumas vezes demonstra rancor; pois ela viveu muitos episódios tristes em sua terra natal. Quanto a abordagem dessa comunicação é a utilização daquilo que ela descreve quanto ao episódio da emancipação da localidade. Ademais, a obra de Maura é de facil acesso, principalmente sendo encontrada em pesquisas na internet.
ExcluirAtenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAchei bem interessante seu tema, uma vez que trabalho com história e literatura também, quais outros autores você costuma trabalhar?,apenas uma troca de experiências, grato .
ResponderExcluirFernando Tadeu Germinatti
Confesso que é a primeira vez que trabalho um conto em sala de aula, embora já tenha escrito alguns artigos sobre história e ficção. Mas pesquisei na internet e descobrir ótimas pesquisas sobre esse tema. Neles estão várias indicações. Obrigado pela leitura.
ExcluirAtenciosamente, Edivaldo Rafael de Souza.
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