Lúcia Dias da Silva Guerra e Leonardo Carnut


HISTÓRIA DO DIREITO HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA): DE JOSUÉ DE CASTRO À EXTINÇÃO DO CONSEA


Introdução
Os direitos humanos e sociais têm uma história. Mesmo com a elaboração de narrativas sobre estes direitos, e em especial em perspectivas hegemônicas, tradicionalmente os direitos humanos e sociais tendem a serem os primeiros alvos de críticas e desmontes nos governos mais conservadores. O caso do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) pode ser considerado como um destes. Após um longo processo de consolidação e reconhecimento da fome como um dos principais problemas sociais de um país capitalista e periférico como Brasil, a consolidação do direito à alimentação como um direito social na Constituição de 1988 e sua efetividade estão sempre na ordem do dia.

Assim, este ensaio teve como objetivo problematizar a trajetória histórica do DHAA, desde seu nascedouro no Brasil com a crítica social trazida por Josué de Castro, passando pelos seus múltiplos avanços e retrocessos nesta trajetória até chegar à extinção do principal órgão na estrutura estatal que se responsabiliza com as ações de asseguramento do DHAA, minimizando as situações de insegurança alimentar e nutricional: o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). É sabido que, este órgão sempre sofreu ameaças em sua sustentabilidade, sendo seu último suspiro como uma das primeiras ações do governo do presidente Jair Bolsonaro. Neste sentido, recuperar essa trajetória expõe a importância deste órgão e sinaliza os problemas que estão por vir.

Um percurso tortuoso
O percurso do reconhecimento e das garantias para a efetivação do DHAA no Brasil é resultado de importantes movimentos políticos e sociais vividos ao longo de décadas e, principalmente, durante a redemocratização do Estado brasileiro. Para entendermos as bases conceituais e políticas da construção do DHAA a partir da trajetória da SAN, precisaremos recorrer brevemente ao período de 1930 a 1986, considerando que isso já está bem documentado na literatura (Maluf 2009; Burlandy 2009; Vasconcelos, 2005).

Desde a década de 1930, o diagnóstico da fome feito por Josué de Castro denunciou que os problemas alimentares presentes na população brasileira consistem em um complexo simultâneo de manifestações biológicas, econômicas e sociais, mediado por fatores políticos, seja pela omissão do Estado ou da própria sociedade em consentir com tal situação (Castro, 2008).

Os primeiros programas governamentais de alimentação e nutrição são das décadas de 1930 e 1940 que foram impulsionados pelo Plano SALTE - Saúde, Alimentação, Transporte e Energia. Este período foi marcado pelo intenso processo de urbanização e industrialização, em que os problemas alimentares brasileiros evidenciavam a forte relação entre a alimentação, a miséria, a pobreza e o atraso econômico. Estes programas se estenderam até o início da década de 1960 e estavam focalizadas em grupos específicos, como trabalhadores, gestante e crianças/escolares. Continham uma abordagem voltada à distribuição de gêneros alimentícios, como o leite em pó, associados à padronização de práticas e hábitos alimentares que reforçavam a relação do alimento como mercadoria, já que estava sujeita aos interesses econômicos internacionais do escoamento do excesso de produção (Vasconcelos, 2005).

Durante a ditadura militar as questões ligadas à alimentação eram coordenadas pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), centralizavam-se em programas voltados para a produção e comercialização de alimentos e, posteriormente, na suplementação das carências nutricionais que mais uma vez estava voltadas aos grupos prioritários. No entanto, neste período destaca-se a criação de alguns mecanismos institucionais que podem ser identificados como iniciativas de articulação intersetorial no âmbito da SAN, como as ações do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição - PRONAN (Burlandy, 2009).

Guardado o devido “salto histórico”, mais recentemente a SAN ganha maior visibilidade no cenário nacional enquanto movimento político-normativo para a efetivação do DHAA. Em 1985, é feita a primeira referência a uma proposta de política pública: “Segurança Alimentar - proposta de uma política contra a fome” que apesar de suas poucas consequências práticas, continha as bases das diretrizes de uma política nacional de SAN e a criação de um Conselho Nacional de SAN - CONSEA (Maluf, 2009).

Em 1986, houve uma intensa movimentação na área da saúde pública com a luta pela garantia do direito à saúde no Brasil (Movimento da Reforma Sanitária). Destaca-se a realização da I Conferência Nacional de Alimentação e Nutrição no interior da 8ª Conferência Nacional de Saúde (Arruda e Arruda, 2007). Neste momento, foi lançada a noção inicial de SAN, que acrescentou ao termo consagrado internacionalmente ‘segurança alimentar’ o adjetivo ‘nutricional’, com o objetivo de interligar os dois principais enfoques que estiveram na base da sua construção, que são o socioeconômico e o de saúde e nutrição. Em adicional, houve a proposta de um Conselho Nacional de Alimentação e Nutrição que formulasse uma política nacional para a área e a criação de um Sistema Nacional de SAN integrado por conselhos e sistemas nas esferas estadual e municipal (Maluf, 2009).

No âmbito do governo federal, a década de 1990 foi marcada pelo discurso da estabilização econômica, da “modernização” do Estado, com a redução dos recursos financeiros, o esvaziamento e a extinção de programas e iniciativas de alimentação e nutrição junto ao Estado, relegando a SAN a segundo plano (Machado et al., 2015; Vasconcelos, 2005). No entanto, houve importantes mobilizações sociais que buscavam contestar essas ações estatais.

Em 1993, por exemplo, o ‘Movimento pela Ética na Política’ liderado pelo ‘Betinho’ impulsionou o processo de formação de Comitês de Combate à Fome que ganhou força com o movimento social ‘Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida’. Os comitês tinham abrangência local, municipal e estadual, eram constituídos por setores diversos da sociedade e tinham a articulação de dois tipos de ações: emergenciais e de pressão de opinião pública (Vasconcelos, 2005). O movimento resultou na criação da ONG ‘Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e Pela Vida’, ainda existente nos dias atuais.

Da criação à extinção do CONSEA
Neste mesmo ano, houve a criação do CONSEA (Decreto nº 807, de 22 de abril de 1993) e iniciou-se a construção de uma agenda nacional de SAN que deu origem às iniciativas de descentralização de programas de alimentação e nutrição, como a alimentação escolar, ampliação do Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) e distribuição de estoques públicos de alimentos à populações carentes (Maluf, 2009).

Com o CONSEA, deu-se início a organização e realização de conferências nacionais de SAN, espaços importantes para a construção do DHAA no Brasil. Em 1994, houve a I Conferência Nacional de SAN que elaborou o primeiro esboço da definição atual de SAN, naquele momento foram produzidas também uma declaração política e um documento programático para a criação de uma política nacional de SAN, que resgatou o proposto em 1986 (Rocha et al., 2013).

O CONSEA durou pouco tempo, sendo extinto em 1995 pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Esta interrupção prejudicou a revisão e o aprofundamento da SAN no cenário brasileiro, principalmente, no que se refere à participação da sociedade civil na construção de políticas públicas para a garantia do DHAA (MALUF, 2009). A proposta apresentada na época foi o ‘Programa Comunidade Solidária’, que contou com um conselho para avançar na “parceria” Estado-sociedade. Esta estratégia pretendia enfrentar o combate à fome, à pobreza e à exclusão social inspirado nas experiências de mobilização da sociedade civil, no entanto, dentro de um plano focalizado no discurso neoliberal, de flexibilidade e parcerias entre o estado mínimo, o mercado e o terceiro setor (Rocha et al., 2013; Vasconcelos, 2005).

Houve a intenção do governo FHC de dar continuidade aos trabalhos do CONSEA, com a criação de um Comitê Setorial de SAN, porém, a ideia de incorporação da SAN como um objetivo estratégico orientador de políticas públicas submergiu as prioridades gerais do governo, limitando-se ao desenvolvimento de programas focais em lugar da construção de uma política pública (Maluf, 2009). Neste cenário, a exceção foi alcançada pela Política Nacional de Alimentação e Nutrição - PNAN (Portaria nº 710, de 10 de junho de 1999, do Ministério da Saúde), cujo objetivo era de estabelecer diretrizes específicas para as ações de alimentação e nutrição dentro do setor saúde (Vasconcelos, 2005).

Em 1998, a sociedade civil brasileira se organizou na criação do Fórum Brasileiro de SAN (FBSAN) que congregou entidades distribuídas por todas as regiões do país. O FBSAN desde a sua existência tem contribuído com a mobilização social e o avanço nas formulações sobre SAN, organizando a participação brasileira em fóruns internacionais e direcionando a atuação no âmbito local (Rocha et al., 2013).

Nesse período houve retrocessos na apropriação da noção de SAN como garantia do DHAA no âmbito do governo federal, contudo, ocorria a sua ampliação em duas portas nas esferas estadual e municipal: a do abastecimento alimentar ligado a produção e as práticas alimentares; e a da área de assistência/desenvolvimento social (Maluf, 2009).

Chegamos, assim, a um marco importante da agenda pública da SAN para a garantia do DHAA, o ‘Projeto Fome Zero: uma Política Nacional de SAN para o Brasil’. Lançado em 2001 pelo Instituto Cidadania, ele foi a base do Programa Fome Zero apresentado em 2003 pelo governo federal, sua criação possibilitou a inserção do discurso do pacto social de combate à fome e à miséria, da pauta do direito à alimentação e da SAN como prioridade de governo. Isto desencadeou a construção de políticas intersetoriais desenvolvidas em três modalidades de intervenção: estruturais, específicas e locais (Vasconcelos, 2005).

Para isso, foi montado um arcabouço operacional que envolveu diversos ministérios, houve a criação do Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome (MESA), além da reativação do CONSEA. Após muitas críticas, o MESA foi reformulado, criando-se o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) (Machado et al., 2015), atualmente existente como Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário (MDSA).

Dentre as ações e programas desenvolvidos por este Ministério, destaca-se o Programa Bolsa Família (PBF) em 2004, que unificou outros programas de transferência de renda originários do governo anterior (MACHADO et al., 2015). Segundo o MDSA, o PBF beneficiou em 2015 cerca de 13,9 milhões de famílias (BRASIL, 2015) e estudos mostram o seu impacto positivo na aquisição e qualidade dos alimentos nos domicílios e na alimentação e crescimento infantil (Martins e Monteiro, 2016; Segura-Pérez et al, 2016).

Em 2011, houve a continuidade na construção da agenda pública de SAN junto ao governo federal, com o plano de governo ‘Brasil sem Miséria’ criado para superar a extrema pobreza no país. O plano foi organizado em três eixos: a garantia de renda, para alívio imediato da situação de pobreza; o acesso a serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania das famílias; e a inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres do campo e da cidade. Por conseguinte, foi lançado o ‘Brasil Carinhoso’ após o plano anterior ter identificado que a miséria tinha maior incidência entre crianças de 0 a 6 anos e adolescentes de até 15 anos. Este segundo plano foi concebido numa perspectiva de atenção integral e envolveu três importantes aspectos ligados ao desenvolvimento infantil: renda, educação e saúde (Brasil, 2015).

O período de 2003 a 2015 foi marcado pela expectativa de um Estado suficientemente forte para diminuir a desigualdade, que implementou uma série de programas e iniciativas direcionada aos segmentos mais pobres da população brasileira e àqueles até então excluídos de algumas políticas. Mas, também denota-se a manutenção da ordem estabelecida por meio de uma política econômica que favoreceu largamente os interesses do capital financeiro nacional e internacional. A partir de 2011, por exemplo, o Brasil evidencia o declínio do seu crescimento econômico em decorrência do prolongamento da crise do capitalismo internacional e de medidas políticas internas, que revelam o caráter efêmero das conquistas baseadas na inclusão pelo consumo e altamente dependentes do mercado externo.

Atualmente, o Brasil passa por um processo de golpe de Estado e deslegitimação da democracia enquanto procedimento. Em que pese os diversos motivos que geraram a crise política do país (que não são objetivos deste texto, mas que influenciam no tema abordado), o fato é que as políticas públicas estruturantes de proteção social, como saúde, educação e assistência social deixaram de ser prioridade, iniciando-se o retrocesso e desmonte realizado pelo governo ilegítimo. Neste sentido o direito à alimentação não passou despercebido. Com a eleição de Jair Bolsonaro e sua posse em 2019, a primeira ação de grande repercussão no seu terceiro dia de mandato foi a extinção do CONSEA e, com isso, mais uma derrocada na efetivação do direito humano à alimentação adequada no Brasil, jogando o país novamente no mapa da fome.


Referências
Lúcia Dias da Silva Guerra é Professora Doutora da Graduação em Nutrição da Universidade Anhanguera (UA) em São Paulo.

Leonardo Carnut é Professor Adjunto do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

ARRUDA BKG, ARRUDA IKG. Marcos referenciais da trajetória das políticas de alimentação e nutrição no Brasil. Rev. Bras. Saúde Matern Infant 2007;7(3):319-326.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional. Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional: 2016/2019. Brasília: 2016. [acesso em 05 julho 2016]. Disponível em: http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/plano-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-ja-esta-disponivel-na-internet

BURLANDY L. A construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil: estratégias e desafios para a promoção da intersetorialidade no âmbito federal de governo. Cien Saude Colet 2009;14(3):851-860.

CASTRO CM, Coimbra M. Problema alimentar no Brasil. São Paulo: ALMED, 1985.

CASTRO J. Geografia da Fome. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2008.

MACHADO M, ROCHA DF, CAMPOS MM. Dos movimentos sociais à implementação do Programa Fome Zero (1993-2013): a trajetória da cidadania alimentar no Brasil (20 anos da ação da cidadania e 10 anos do Programa Fome Zero). Segurança Alimentar e Nutricional 2015;22(2):692-705.

MALUF RS. Segurança Alimentar e Nutricional. 2. ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2009.

MARTINS APB, MONTEIRO CA. Impact of the Bolsa Familia program on food availability of low-income Brazilian families: a quasi experimental study. BMC Public Health. 2016;16(1):827.

ROCHA C, BURLANDY L, MAGALHÃES R. Segurança Alimentar e Nutricional: perspectivas, aprendizados e desafios para as políticas públicas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2013. P. 171-185.

SEGURA-PÉREZ S, GRAJEDA R, PÉREZ-ESCAMILLA R. Conditional cash transfer programs and the health and nutrition of Latin American children. Rev Panam Salud Publica 40(2), 2016.

VASCONCELOS FAG. Combate à fome no Brasil: Uma análise histórica de Vargas a Lula. Rev. Nutr. 2005;18(4):439-457.


Um comentário:

  1. Olá!

    Ano passado foi sancionada a Lei 13.666/2018, que inclui a educação alimentar e nutricional entre os temas transversais dos currículos da educação básica. Vocês acreditam que essa medida pode, de alguma maneira, conter ou reverter esse cenário de retrocessos em relação ao direito à alimentação?

    Parabéns pelo texto e pela escolha do tema!

    Mariana Dalla Vecchia

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.