HISTÓRIA DO DIREITO
HUMANO À ALIMENTAÇÃO ADEQUADA (DHAA): DE JOSUÉ DE CASTRO À EXTINÇÃO DO CONSEA
Introdução
Os direitos humanos e sociais têm uma história. Mesmo com a elaboração
de narrativas sobre estes direitos, e em especial em perspectivas hegemônicas,
tradicionalmente os direitos humanos e sociais tendem a serem os primeiros
alvos de críticas e desmontes nos governos mais conservadores. O caso do
Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) pode ser considerado como um
destes. Após um longo processo de consolidação e reconhecimento da fome como um
dos principais problemas sociais de um país capitalista e periférico como
Brasil, a consolidação do direito à alimentação como um direito social na
Constituição de 1988 e sua efetividade estão sempre na ordem do dia.
Assim, este ensaio teve como objetivo problematizar a trajetória
histórica do DHAA, desde seu nascedouro no Brasil com a crítica social trazida
por Josué de Castro, passando pelos seus múltiplos avanços e retrocessos nesta
trajetória até chegar à extinção do principal órgão na estrutura estatal que se
responsabiliza com as ações de asseguramento do DHAA, minimizando as situações
de insegurança alimentar e nutricional: o Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (CONSEA). É sabido que, este órgão sempre sofreu
ameaças em sua sustentabilidade, sendo seu último suspiro como uma das
primeiras ações do governo do presidente Jair Bolsonaro. Neste sentido,
recuperar essa trajetória expõe a importância deste órgão e sinaliza os
problemas que estão por vir.
Um percurso tortuoso
O percurso do reconhecimento e das garantias para a efetivação do DHAA no
Brasil é resultado de importantes movimentos políticos e sociais vividos ao
longo de décadas e, principalmente, durante a redemocratização do Estado
brasileiro. Para entendermos as bases conceituais e políticas da construção do
DHAA a partir da trajetória da SAN, precisaremos recorrer brevemente ao período
de 1930 a 1986, considerando que isso já está bem documentado na literatura (Maluf
2009; Burlandy 2009; Vasconcelos, 2005).
Desde a década de 1930, o diagnóstico da fome feito por Josué de Castro
denunciou que os problemas alimentares presentes na população brasileira
consistem em um complexo simultâneo de manifestações biológicas, econômicas e
sociais, mediado por fatores políticos, seja pela omissão do Estado ou da
própria sociedade em consentir com tal situação (Castro, 2008).
Os primeiros programas governamentais de alimentação e nutrição são das
décadas de 1930 e 1940 que foram impulsionados pelo Plano SALTE - Saúde, Alimentação,
Transporte e Energia. Este período foi marcado pelo intenso processo de
urbanização e industrialização, em que os problemas alimentares brasileiros
evidenciavam a forte relação entre a alimentação, a miséria, a pobreza e o
atraso econômico. Estes programas se estenderam até o início da década de 1960
e estavam focalizadas em grupos específicos, como trabalhadores, gestante e
crianças/escolares. Continham uma abordagem voltada à distribuição de gêneros
alimentícios, como o leite em pó, associados à padronização de práticas e
hábitos alimentares que reforçavam a relação do alimento como mercadoria, já
que estava sujeita aos interesses econômicos internacionais do escoamento do
excesso de produção (Vasconcelos, 2005).
Durante a ditadura militar as questões ligadas à alimentação eram
coordenadas pelo Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN),
centralizavam-se em programas voltados para a produção e comercialização de
alimentos e, posteriormente, na suplementação das carências nutricionais que mais
uma vez estava voltadas aos grupos prioritários. No entanto, neste período
destaca-se a criação de alguns mecanismos institucionais que podem ser
identificados como iniciativas de articulação intersetorial no âmbito da SAN,
como as ações do II Programa Nacional de Alimentação e Nutrição - PRONAN (Burlandy,
2009).
Guardado o devido “salto histórico”, mais recentemente a SAN ganha maior
visibilidade no cenário nacional enquanto movimento político-normativo para a
efetivação do DHAA. Em 1985, é feita a primeira referência a uma proposta de
política pública: “Segurança Alimentar -
proposta de uma política contra a fome” que apesar de suas poucas consequências
práticas, continha as bases das diretrizes de uma política nacional de SAN e a
criação de um Conselho Nacional de SAN - CONSEA (Maluf, 2009).
Em 1986, houve uma intensa movimentação na área da saúde pública com a
luta pela garantia do direito à saúde no Brasil (Movimento da Reforma
Sanitária). Destaca-se a realização da I Conferência Nacional de Alimentação e
Nutrição no interior da 8ª Conferência Nacional de Saúde (Arruda e Arruda,
2007). Neste momento, foi lançada a noção inicial de SAN, que acrescentou ao
termo consagrado internacionalmente ‘segurança alimentar’ o adjetivo
‘nutricional’, com o objetivo de interligar os dois principais enfoques que
estiveram na base da sua construção, que são o socioeconômico e o de saúde e
nutrição. Em adicional, houve a proposta de um Conselho Nacional de Alimentação
e Nutrição que formulasse uma política nacional para a área e a criação de um
Sistema Nacional de SAN integrado por conselhos e sistemas nas esferas estadual
e municipal (Maluf, 2009).
No âmbito do governo federal, a década de 1990 foi marcada pelo discurso
da estabilização econômica, da “modernização” do Estado, com a redução dos
recursos financeiros, o esvaziamento e a extinção de programas e iniciativas de
alimentação e nutrição junto ao Estado, relegando a SAN a segundo plano (Machado
et al., 2015; Vasconcelos, 2005). No entanto, houve importantes mobilizações
sociais que buscavam contestar essas ações estatais.
Em 1993, por exemplo, o ‘Movimento pela Ética na Política’ liderado pelo
‘Betinho’ impulsionou o processo de formação de Comitês de Combate à Fome que
ganhou força com o movimento social ‘Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria
e Pela Vida’. Os comitês tinham abrangência local, municipal e estadual, eram
constituídos por setores diversos da sociedade e tinham a articulação de dois
tipos de ações: emergenciais e de pressão de opinião pública (Vasconcelos,
2005). O movimento resultou na criação da ONG ‘Ação da Cidadania contra a Fome,
a Miséria e Pela Vida’, ainda existente nos dias atuais.
Da criação à extinção do CONSEA
Neste mesmo ano, houve a criação do CONSEA (Decreto nº 807, de 22 de
abril de 1993) e iniciou-se a construção de uma agenda nacional de SAN que deu
origem às iniciativas de descentralização de programas de alimentação e
nutrição, como a alimentação escolar, ampliação do Programa de Alimentação do
Trabalhador (PAT) e distribuição de estoques públicos de alimentos à populações
carentes (Maluf, 2009).
Com o CONSEA, deu-se início a organização e realização de conferências
nacionais de SAN, espaços importantes para a construção do DHAA no Brasil. Em
1994, houve a I Conferência Nacional de SAN que elaborou o primeiro esboço da
definição atual de SAN, naquele momento foram produzidas também uma declaração
política e um documento programático para a criação de uma política nacional de
SAN, que resgatou o proposto em 1986 (Rocha et al., 2013).
O CONSEA durou pouco tempo, sendo extinto em 1995 pelo governo Fernando
Henrique Cardoso. Esta interrupção prejudicou a revisão e o aprofundamento da
SAN no cenário brasileiro, principalmente, no que se refere à participação da
sociedade civil na construção de políticas públicas para a garantia do DHAA
(MALUF, 2009). A proposta apresentada na época foi o ‘Programa Comunidade
Solidária’, que contou com um conselho para avançar na “parceria”
Estado-sociedade. Esta estratégia pretendia enfrentar o combate à fome, à
pobreza e à exclusão social inspirado nas experiências de mobilização da
sociedade civil, no entanto, dentro de um plano focalizado no discurso
neoliberal, de flexibilidade e parcerias entre o estado mínimo, o mercado e o
terceiro setor (Rocha et al., 2013; Vasconcelos, 2005).
Houve a intenção do governo FHC de dar continuidade aos trabalhos do
CONSEA, com a criação de um Comitê Setorial de SAN, porém, a ideia de
incorporação da SAN como um objetivo estratégico orientador de políticas
públicas submergiu as prioridades gerais do governo, limitando-se ao
desenvolvimento de programas focais em lugar da construção de uma política
pública (Maluf, 2009). Neste cenário, a exceção foi alcançada pela Política
Nacional de Alimentação e Nutrição - PNAN (Portaria nº 710, de 10 de junho de
1999, do Ministério da Saúde), cujo objetivo era de estabelecer diretrizes
específicas para as ações de alimentação e nutrição dentro do setor saúde (Vasconcelos,
2005).
Em 1998, a sociedade civil brasileira se organizou na criação do Fórum
Brasileiro de SAN (FBSAN) que congregou entidades distribuídas por todas as
regiões do país. O FBSAN desde a sua existência tem contribuído com a
mobilização social e o avanço nas formulações sobre SAN, organizando a
participação brasileira em fóruns internacionais e direcionando a atuação no
âmbito local (Rocha et al., 2013).
Nesse período houve retrocessos na apropriação da noção de SAN como
garantia do DHAA no âmbito do governo federal, contudo, ocorria a sua ampliação
em duas portas nas esferas estadual e municipal: a do abastecimento alimentar
ligado a produção e as práticas alimentares; e a da área de
assistência/desenvolvimento social (Maluf, 2009).
Chegamos, assim, a um marco importante da agenda pública da SAN para a
garantia do DHAA, o ‘Projeto Fome Zero: uma Política Nacional de SAN para o
Brasil’. Lançado em 2001 pelo Instituto Cidadania, ele foi a base do Programa
Fome Zero apresentado em 2003 pelo governo federal, sua criação possibilitou a
inserção do discurso do pacto social de combate à fome e à miséria, da pauta do
direito à alimentação e da SAN como prioridade de governo. Isto desencadeou a
construção de políticas intersetoriais desenvolvidas em três modalidades de
intervenção: estruturais, específicas e locais (Vasconcelos, 2005).
Para isso, foi montado um arcabouço operacional que envolveu diversos
ministérios, houve a criação do Ministério Extraordinário de Segurança
Alimentar e Combate à Fome (MESA), além da reativação do CONSEA. Após muitas
críticas, o MESA foi reformulado, criando-se o Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome (MDS) (Machado et al., 2015), atualmente existente como Ministério do Desenvolvimento Social e
Agrário (MDSA).
Dentre as ações e programas desenvolvidos por este
Ministério, destaca-se o Programa Bolsa Família (PBF) em 2004, que unificou
outros programas de transferência de renda originários do governo anterior (MACHADO et
al., 2015). Segundo o MDSA, o PBF beneficiou em 2015 cerca de 13,9 milhões
de famílias (BRASIL, 2015) e estudos mostram o seu impacto positivo na
aquisição e qualidade dos alimentos nos domicílios e na alimentação e
crescimento infantil (Martins e Monteiro, 2016; Segura-Pérez et al, 2016).
Em 2011, houve a continuidade na construção da agenda pública de SAN
junto ao governo federal, com o plano de governo ‘Brasil sem Miséria’ criado
para superar a extrema pobreza no país. O plano foi organizado em três eixos: a
garantia de renda, para alívio imediato da situação de pobreza; o acesso a
serviços públicos, para melhorar as condições de educação, saúde e cidadania
das famílias; e a inclusão produtiva, para aumentar as capacidades e as
oportunidades de trabalho e geração de renda entre as famílias mais pobres do
campo e da cidade. Por conseguinte, foi lançado o ‘Brasil Carinhoso’ após o
plano anterior ter identificado que a miséria tinha maior incidência entre
crianças de 0 a 6 anos e adolescentes de até 15 anos. Este segundo plano foi
concebido numa perspectiva de atenção integral e envolveu três importantes
aspectos ligados ao desenvolvimento infantil: renda, educação e saúde (Brasil,
2015).
O período de 2003 a 2015 foi marcado pela expectativa de um Estado
suficientemente forte para diminuir a desigualdade, que implementou uma série
de programas e iniciativas direcionada aos segmentos mais pobres da população
brasileira e àqueles até então excluídos de algumas políticas. Mas, também
denota-se a manutenção da ordem estabelecida por meio de uma política econômica
que favoreceu largamente os interesses do capital financeiro nacional e
internacional. A partir de 2011, por exemplo, o Brasil evidencia o declínio do
seu crescimento econômico em decorrência do prolongamento da crise do
capitalismo internacional e de medidas políticas internas, que revelam o
caráter efêmero das conquistas baseadas na inclusão pelo consumo e altamente
dependentes do mercado externo.
Atualmente, o Brasil passa por um processo de golpe
de Estado e deslegitimação da democracia
enquanto procedimento. Em que pese os diversos motivos que geraram a crise
política do país (que não são objetivos deste texto, mas que influenciam no
tema abordado), o fato é que as políticas públicas estruturantes de proteção
social, como saúde, educação e assistência social deixaram de ser prioridade,
iniciando-se o retrocesso e desmonte realizado pelo governo ilegítimo. Neste
sentido o direito à alimentação não passou despercebido. Com a eleição de Jair
Bolsonaro e sua posse em 2019, a primeira ação de grande repercussão no seu
terceiro dia de mandato foi a extinção do CONSEA e, com isso, mais uma
derrocada na efetivação do direito humano à alimentação adequada no Brasil,
jogando o país novamente no mapa da fome.
Referências
Lúcia Dias da Silva Guerra é Professora Doutora da
Graduação em Nutrição da Universidade Anhanguera (UA) em São Paulo.
Leonardo Carnut é Professor Adjunto do Centro de
Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde (CEDESS) da Universidade Federal de
São Paulo (UNIFESP)
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ARRUDA IKG. Marcos referenciais da trajetória das políticas de alimentação e
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http://www4.planalto.gov.br/consea/comunicacao/noticias/plano-nacional-de-seguranca-alimentar-e-nutricional-ja-esta-disponivel-na-internet
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construção da política de segurança alimentar e nutricional no Brasil:
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Olá!
ResponderExcluirAno passado foi sancionada a Lei 13.666/2018, que inclui a educação alimentar e nutricional entre os temas transversais dos currículos da educação básica. Vocês acreditam que essa medida pode, de alguma maneira, conter ou reverter esse cenário de retrocessos em relação ao direito à alimentação?
Parabéns pelo texto e pela escolha do tema!
Mariana Dalla Vecchia