EDUCAÇÃO COMO CONTRAPOSIÇÃO À BARBÁRIE:
A FORÇA DOS IDEAIS TIRÂNICOS
O advento da Segunda Grande Guerra
Mundial, que nos deixou um saldo de mais de cinquenta milhões de mortos,
produziu um impacto assustador não somente pelo rastro de destruição da vida
material e humana, mas também pela capacidade da própria humanidade de ter
mergulhado tão profundamente dentro de um estado de barbárie. Os ideais de
progresso, os avanços científicos e as sofisticações tecnológicas atingiram um
grau tão grande de desenvolvimento que contraditoriamente e em consequência
disso, alcançaram também o poder de exterminar a própria vida orgânica da
terra. E a transgressão nesse processo de todos os limites éticos, morais e
humanitários colocaram em suspensão todas as concepções de um projeto
civilizatório pensado até então.
O projeto de modernidade guiado pelo
ideal de progresso, ou seja, guiado pela busca de um caminhar sempre para o
melhor, amparado dentro de uma perspectiva civilizatória, racional, libertadora
e autônoma dos sujeitos teve no campo da educação as concepções de Immanuel Kant
(1999) como um dos principais expoentes. Na concepção kantiana o homem é o
único ser que precisa ser educado. Diferentemente dos outros animais que tem
uma condição preexiste que os constitui como tais. Os homens necessitam
construir seu próprio projeto de racionalidade. Por isso, precisa ser cuidado a
partir da disciplina, da instrução e da formação para que por um lado não façam
um uso prejudicial de suas forças e que por outro tomem posse da construção de seus
próprios destinos através do uso da razão.
Nesse sentido, a educação é algo que
precisa ser transmitido e aperfeiçoado geracionalmente. Em contra partida, o
homem que se coloca fora desse contexto estaria em uma espécie de estado bruto,
selvagem. Tendo em vista que é pela educação que o homem se torna civilizado,
humanizado. (KANT, 1999)
“O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela
educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber
tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros.
Portanto, a falta os torna mestres muito ruins de seus educandos” (KANT, 1999,
p. 15).
O cenário desolador do pós-guerra fez
com que vários pensadores de diversos campos e correntes colocassem em
suspensão conceitos e concepções de civilização, de racionalidade e de
humanidade e se postassem a refletir como uma era que se inaugurou almejando
ideais de prosperidade e progresso foi capaz de produzir tão latente estado de
barbárie. Na educação, Theodor W. Adorno
(2006) será um grande representante dessa leva de pensadores, que estarão
preocupados em entender os caminhos que levaram a barbárie e como evitar que
estes acontecimentos voltem a se repetir no presente.
Notadamente, Adorno (2006) não descarta
o projeto moderno pensando dentro da educação por Kant (1999), mas entende que
é preciso fazer uma crítica a este processo. Nesse sentido, uma educação sem o
desenvolvimento de um pensamento crítico capaz de expor as contradições de toda
e qualquer relação da vida social, o enfraquecimento e a redução da
racionalidade a uma condição meramente coisificada e instrumental são algumas
pistas que Adorno levanta, como fatores que contribuíram para o estado de
barbarização para o qual o mundo foi tragado.
E será nesse sentido, também, que o próprio colocará a educação como
sendo portadora de um papel indispensável e fundamental no mundo: evitar a
volta ao estado de barbárie através da contestação e da resistência. Ou seja, a
educação é colocada como um fator para a emancipação e precisa pensar não
somente no indivíduo e no esclarecimento de sua consciência, mas também na
relação deste com o meio social em que está inserido.
Para pensarmos como desenvolver esse
pensamento crítico e autônomo, Adorno (2006) em um texto intitulado “Como
Elaborar o Passado” propõe pensarmos na necessidade de enfrentarmos as causas e
as contradições que fizeram parte da constituição de qualquer sociedade. Em vez
da produção de amenidades ou de distorções que tentam reduzir a violência e a
barbárie a um ponto fora da curva, a um mero excesso. Tais posições, na visão
deste autor, é o que mantem viva e pulsante em nosso presente ideias e
concepções autoritárias como, por exemplo, o fascismo ou nazismo.
“O nazismo sobrevive, e continuamos sem
saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de
não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua
presente nos homens bem como nas condições que os cercam” (ADORNO, 2006, p. 29).
As palavras dele soam proféticas nos
dias atuais, tendo em vista que, por várias partes do mundo, ideais tirânicos
voltam a ganhar força. Temos, por exemplo, acompanhado o crescimento de grupos
e partidos ultranacionalistas sustentados em ideias neonazistas e neofascistas
na Europa. Por sua vez no Brasil, estamos vendo também uma crescente onda
ultraconservadora somada a um fundamentalismo religioso que depõe contra a sociedade
livre que almejamos. Mostrando-nos, em nosso caso, que não nos resolvemos com
nosso passado colonial, aristocrata e escravocrata. Todos esses fantasmas que
nos rondam no presente só evidenciam o que Adorno (2006) já alertava em suas
reflexões:
“Mas, mesmo acontecendo isto, o perigo
permanece. O passado só estará plenamente elaborado no instante em que
estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde
manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (ADORNO,
2006, p. 49).
Desta forma, uma educação que pretende
assumir uma visão crítica e emancipadora precisa conectar o sujeito com seu
passado e sua história para que este tome autoconsciência dos processos de
formações histórico-sociais que ele está inserido. Este é um pressuposto para o
aprimoramento dos passos a serem dados sem repetir erros que foram causas de um
passado. É, nesse sentindo, também, que se pode ter uma postura autônoma dentro
da sociedade sem assumir passivamente aquilo que lhe é dado ou imposto. É tendo
consciência de si e de sua história que se tem uma possibilidade viável de não
ser iludido por uma visão falsa da realidade muitas vezes difundida, por
exemplo, pela indústria cultural.
Adorno (2006) faz uma reflexão
importante sobre o processo formativo e como este sofreu uma distorção ou mesmo
uma deformação na medida em que se tornou submisso a determinados aspectos da
formação social onde a cultura por sua vez se tornou também submissa a
critérios objetivos da produção econômica estabelecida. Em outras palavras, o
processo de formação se tornou enfraquecido ou condicionado a uma pauta
objetiva econômica sustentada e referendada por um convencionalismo cultural
determinado dentro das estruturas de formação social.
A indústria cultural nesse aspecto
assume o papel de criar uma massa semiformada onde a partir dela se criam
pautas dentro de uma visão objetiva de produtividade e de consumo (MAAR, 2003).
Essa relação enfraquece o processo formativo e submete este e juntamente o
pensamento e a cultura a uma lógica capitalista. Reduzindo-os desta maneira a
condição meramente mercadológica. Essa condição de submissão cria muitas vezes
uma noção distorcida e falsa da realidade. Na medida em que cria processos
conciliatórios, obscurece e oculta as contradições inerentes ao processo
formativo de qualquer estrutura social.
“Como indústria cultural, o que se
instala como ‘cultural’ remete à sociedade copiando a si própria, perenizando-a
ao orientar-se pela interpretação retroativa da sociedade já feita. Neste
sentido, ‘cultura’ é a sociedade como ideologia. Mas, ao ser sociedade neste
sentido ideológico, de reconstrução integrada dela mesma, sem as arestas das
contradições que perfazem a dialética do social vivo – como dialética
‘congelada’ – a cultura mediatiza entre a sociedade e a semiformação. As
condições da produção material existentes impõem esta forma cultural-ideológica
e são refletidas na semiformação” (MAAR, 2003, p. 468).
Desta maneira, em uma sociedade onde as
contradições são amenizadas e ocultadas, não há desta feita possibilidade para
outra coisa a não ser a conformação e a adaptação. Pois, a cultura, o
pensamento e os processos formativos se tornam meros replicadores do sistema
vigente (ADORNO, 2006). A educação, nesse contexto, em vez de assumir o papel
emancipador e esclarecedor, se reduz, sem oferecer resistência alguma, a lógica
reprodutivista e adaptativa dos sujeitos à ordem estabelecida.
Todo esse processo faz com que essas
questões se imponham de uma maneira naturalizada. Como se não fossem fruto das
relações e da produção social. Tal condição de certa forma acaba sendo um
impedimento à crítica ou a tudo aquilo que faça coro dissonante a essas
construções massificadas. Isso transparece, por exemplo, na visão pejorativa
que se tem, muita das vezes, do intelectual. Este o é, por ter adquirido
através de seus estudos um patamar no campo do saber, que ultrapassa a média
massificada do corpo social. Muita vezes é constrangido por essa mesma massa
semiformada a adaptar seu constructo intelectual a essa falsa realidade.
Outro fator que ilustra essa questão se
reflete em como essa sociedade semiformada constitui e transforma os sujeitos
em meros transmissores de informação. A nossa capacidade de crítica e de
construção de um pensamento autônomo é enfraquecido drasticamente em prol de
uma lógica objetiva e produtivista. A forma como nos relacionamos com as
chamadas “novas tecnologias” é um exemplo desse acontecimento. Tornamo-nos
dependentes da técnica. O conteúdo fica subordinado ao uso dos aplicativos,
computadores, celulares, mídias digitais, etc., ao ponto de acreditarmos que,
por si só, esses instrumentos são capazes de produzir conhecimento, saber,
formação. Não é à toa que o próprio professor tem tido seu papel no processo
formativo reduzido à condição de mediador, de facilitador. Ou seja, o professor
enquanto aquele que detinha determinado saber e desempenhava papel de destaque
na construção do saber, agora se vê reduzido ao papel de simples transmissor de
informação para seus alunos.
“A sujeição efetivamente vale como
determinação objetiva no plano do já objetivado pelo verdadeiro sujeito,
revelado para além da sociedade já constituída, como aquele sujeito limite da
reificação, porque ele produz reificação e se subordina voluntariamente a ela” (MAAR,
2003, p. 468).
É nessa perspectiva que Adorno (2006),
enxergará a necessidade de construir uma educação que se proponha a fazer a
contraposição a esse processo massificante e replicador que o sistema
capitalismo tardio por meio da indústria cultural nos impõe. Portanto, uma
educação que não se coloque no debate e na exposição das contradições presentes
na sociedade, não terá capacidade de formar sujeitos críticos e autônomos.
Logo, estará sendo conivente para que estados de barbarização continuem sendo
gestados no interior das sociedades ditas democráticas.
“Considero que o mais importante para
enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos
os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do
esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto
possa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de
consciência progressista” (ADORNO, 2006, p. 127).
A educação, nesse sentido, não deverá
somente atuar como um meio para contribuir para adaptação dos sujeitos ao meio
social. Eminentemente, deverá a educação ser um meio para a resistência.
Resistência ao preconceito, à violência, à tirania, à coisificação do
pensamento, à difusão e à naturalização da barbárie na sociedade. Deverá a
educação, também, ser meio para a crítica e para a produção do pensamento
crítico. Porque é através do pensamento crítico que podemos exteriorizar as
contradições dos processos de formação social no qual estamos inseridos e nos
constituímos enquanto sujeito. Desta forma, a crítica é o caminho para
constituição do sujeito enquanto ser autônomo e ativo. Assim, só uma educação
crítica e resistente pode evitar o retorno da barbárie.
REFERÊNCIAS:
Lucas
de Oliveira Carvalho: Mestrando em Educação – Universidade
Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Graduado em História (UNIT/2010). Colaborador
do GPECS/CNPQ-UFS. Bolsista de Mestrado CAPES.
Juliana
S. Monteiro Vieira: Doutoranda em Educação - Universidade
Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Mestre em Educação (PPED/Unit); Graduada em
Psicologia (UNIT/2014). Colaboradora dos grupos: GPHEN/CNPQ/UNIT e GPECS/CNPQ/UFS.
Bolsista de Doutorado da FAPITEC/SE.
ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Trad. de Wolfegang Leo Maar. 4ªed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2006.
MAAR, Wolfegang Leo. Adorno,
Semiformação e Educação. Educação e
Sociedade. Campinas, v.24, n.83, pp. 459-476. agost, 2003.
KANT, I. Sobre a Pedagogia. Trad. de Francisco C. Fontanella. 2ªed. São
Paulo: Unimep, 1999.
Como buscar essa educação crítica nesse contexto conservador e reacionário? E que atua diretamente na educação, não só no Brasil, como no mundo? Eis o desafio.
ResponderExcluirRodrigo de Souza Pain e Walace Ferreira
Como idealizar uma educação critica dentro de uma sala de aula é também fora dela, contrapondo os grupos e forças políticas que suas ideias totalitárias são facilmente aceitas por uma quantidade considerável de pessoas dentro do ambiente escolar e na sociedade brasileira como um todo, quais seriam os mecanismos que a educação se utilizaria para ser um meio de resistência aos preconceitos, a violência e a naturalização da barbárie?
ResponderExcluirLucas gomes da Silva Nascimento