Lucas de Oliveira Carvalho e Juliana S. Monteiro Vieira


EDUCAÇÃO COMO CONTRAPOSIÇÃO À BARBÁRIE: A FORÇA DOS IDEAIS TIRÂNICOS


O advento da Segunda Grande Guerra Mundial, que nos deixou um saldo de mais de cinquenta milhões de mortos, produziu um impacto assustador não somente pelo rastro de destruição da vida material e humana, mas também pela capacidade da própria humanidade de ter mergulhado tão profundamente dentro de um estado de barbárie. Os ideais de progresso, os avanços científicos e as sofisticações tecnológicas atingiram um grau tão grande de desenvolvimento que contraditoriamente e em consequência disso, alcançaram também o poder de exterminar a própria vida orgânica da terra. E a transgressão nesse processo de todos os limites éticos, morais e humanitários colocaram em suspensão todas as concepções de um projeto civilizatório pensado até então.

O projeto de modernidade guiado pelo ideal de progresso, ou seja, guiado pela busca de um caminhar sempre para o melhor, amparado dentro de uma perspectiva civilizatória, racional, libertadora e autônoma dos sujeitos teve no campo da educação as concepções de Immanuel Kant (1999) como um dos principais expoentes. Na concepção kantiana o homem é o único ser que precisa ser educado. Diferentemente dos outros animais que tem uma condição preexiste que os constitui como tais. Os homens necessitam construir seu próprio projeto de racionalidade. Por isso, precisa ser cuidado a partir da disciplina, da instrução e da formação para que por um lado não façam um uso prejudicial de suas forças e que por outro tomem posse da construção de seus próprios destinos através do uso da razão.

Nesse sentido, a educação é algo que precisa ser transmitido e aperfeiçoado geracionalmente. Em contra partida, o homem que se coloca fora desse contexto estaria em uma espécie de estado bruto, selvagem. Tendo em vista que é pela educação que o homem se torna civilizado, humanizado. (KANT, 1999)

“O homem não pode se tornar um verdadeiro homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz. Note-se que ele só pode receber tal educação de outros homens, os quais a receberam igualmente de outros. Portanto, a falta os torna mestres muito ruins de seus educandos” (KANT, 1999, p. 15).

O cenário desolador do pós-guerra fez com que vários pensadores de diversos campos e correntes colocassem em suspensão conceitos e concepções de civilização, de racionalidade e de humanidade e se postassem a refletir como uma era que se inaugurou almejando ideais de prosperidade e progresso foi capaz de produzir tão latente estado de barbárie.  Na educação, Theodor W. Adorno (2006) será um grande representante dessa leva de pensadores, que estarão preocupados em entender os caminhos que levaram a barbárie e como evitar que estes acontecimentos voltem a se repetir no presente.

Notadamente, Adorno (2006) não descarta o projeto moderno pensando dentro da educação por Kant (1999), mas entende que é preciso fazer uma crítica a este processo. Nesse sentido, uma educação sem o desenvolvimento de um pensamento crítico capaz de expor as contradições de toda e qualquer relação da vida social, o enfraquecimento e a redução da racionalidade a uma condição meramente coisificada e instrumental são algumas pistas que Adorno levanta, como fatores que contribuíram para o estado de barbarização para o qual o mundo foi tragado.  E será nesse sentido, também, que o próprio colocará a educação como sendo portadora de um papel indispensável e fundamental no mundo: evitar a volta ao estado de barbárie através da contestação e da resistência. Ou seja, a educação é colocada como um fator para a emancipação e precisa pensar não somente no indivíduo e no esclarecimento de sua consciência, mas também na relação deste com o meio social em que está inserido.

Para pensarmos como desenvolver esse pensamento crítico e autônomo, Adorno (2006) em um texto intitulado “Como Elaborar o Passado” propõe pensarmos na necessidade de enfrentarmos as causas e as contradições que fizeram parte da constituição de qualquer sociedade. Em vez da produção de amenidades ou de distorções que tentam reduzir a violência e a barbárie a um ponto fora da curva, a um mero excesso. Tais posições, na visão deste autor, é o que mantem viva e pulsante em nosso presente ideias e concepções autoritárias como, por exemplo, o fascismo ou nazismo.

“O nazismo sobrevive, e continuamos sem saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas condições que os cercam” (ADORNO, 2006, p. 29).

As palavras dele soam proféticas nos dias atuais, tendo em vista que, por várias partes do mundo, ideais tirânicos voltam a ganhar força. Temos, por exemplo, acompanhado o crescimento de grupos e partidos ultranacionalistas sustentados em ideias neonazistas e neofascistas na Europa. Por sua vez no Brasil, estamos vendo também uma crescente onda ultraconservadora somada a um fundamentalismo religioso que depõe contra a sociedade livre que almejamos. Mostrando-nos, em nosso caso, que não nos resolvemos com nosso passado colonial, aristocrata e escravocrata. Todos esses fantasmas que nos rondam no presente só evidenciam o que Adorno (2006) já alertava em suas reflexões:

“Mas, mesmo acontecendo isto, o perigo permanece. O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas” (ADORNO, 2006, p. 49).

Desta forma, uma educação que pretende assumir uma visão crítica e emancipadora precisa conectar o sujeito com seu passado e sua história para que este tome autoconsciência dos processos de formações histórico-sociais que ele está inserido. Este é um pressuposto para o aprimoramento dos passos a serem dados sem repetir erros que foram causas de um passado. É, nesse sentindo, também, que se pode ter uma postura autônoma dentro da sociedade sem assumir passivamente aquilo que lhe é dado ou imposto. É tendo consciência de si e de sua história que se tem uma possibilidade viável de não ser iludido por uma visão falsa da realidade muitas vezes difundida, por exemplo, pela indústria cultural.

Adorno (2006) faz uma reflexão importante sobre o processo formativo e como este sofreu uma distorção ou mesmo uma deformação na medida em que se tornou submisso a determinados aspectos da formação social onde a cultura por sua vez se tornou também submissa a critérios objetivos da produção econômica estabelecida. Em outras palavras, o processo de formação se tornou enfraquecido ou condicionado a uma pauta objetiva econômica sustentada e referendada por um convencionalismo cultural determinado dentro das estruturas de formação social.

A indústria cultural nesse aspecto assume o papel de criar uma massa semiformada onde a partir dela se criam pautas dentro de uma visão objetiva de produtividade e de consumo (MAAR, 2003). Essa relação enfraquece o processo formativo e submete este e juntamente o pensamento e a cultura a uma lógica capitalista. Reduzindo-os desta maneira a condição meramente mercadológica. Essa condição de submissão cria muitas vezes uma noção distorcida e falsa da realidade. Na medida em que cria processos conciliatórios, obscurece e oculta as contradições inerentes ao processo formativo de qualquer estrutura social.

“Como indústria cultural, o que se instala como ‘cultural’ remete à sociedade copiando a si própria, perenizando-a ao orientar-se pela interpretação retroativa da sociedade já feita. Neste sentido, ‘cultura’ é a sociedade como ideologia. Mas, ao ser sociedade neste sentido ideológico, de reconstrução integrada dela mesma, sem as arestas das contradições que perfazem a dialética do social vivo – como dialética ‘congelada’ – a cultura mediatiza entre a sociedade e a semiformação. As condições da produção material existentes impõem esta forma cultural-ideológica e são refletidas na semiformação” (MAAR, 2003, p. 468).

Desta maneira, em uma sociedade onde as contradições são amenizadas e ocultadas, não há desta feita possibilidade para outra coisa a não ser a conformação e a adaptação. Pois, a cultura, o pensamento e os processos formativos se tornam meros replicadores do sistema vigente (ADORNO, 2006). A educação, nesse contexto, em vez de assumir o papel emancipador e esclarecedor, se reduz, sem oferecer resistência alguma, a lógica reprodutivista e adaptativa dos sujeitos à ordem estabelecida.

Todo esse processo faz com que essas questões se imponham de uma maneira naturalizada. Como se não fossem fruto das relações e da produção social. Tal condição de certa forma acaba sendo um impedimento à crítica ou a tudo aquilo que faça coro dissonante a essas construções massificadas. Isso transparece, por exemplo, na visão pejorativa que se tem, muita das vezes, do intelectual. Este o é, por ter adquirido através de seus estudos um patamar no campo do saber, que ultrapassa a média massificada do corpo social. Muita vezes é constrangido por essa mesma massa semiformada a adaptar seu constructo intelectual a essa falsa realidade.

Outro fator que ilustra essa questão se reflete em como essa sociedade semiformada constitui e transforma os sujeitos em meros transmissores de informação. A nossa capacidade de crítica e de construção de um pensamento autônomo é enfraquecido drasticamente em prol de uma lógica objetiva e produtivista. A forma como nos relacionamos com as chamadas “novas tecnologias” é um exemplo desse acontecimento. Tornamo-nos dependentes da técnica. O conteúdo fica subordinado ao uso dos aplicativos, computadores, celulares, mídias digitais, etc., ao ponto de acreditarmos que, por si só, esses instrumentos são capazes de produzir conhecimento, saber, formação. Não é à toa que o próprio professor tem tido seu papel no processo formativo reduzido à condição de mediador, de facilitador. Ou seja, o professor enquanto aquele que detinha determinado saber e desempenhava papel de destaque na construção do saber, agora se vê reduzido ao papel de simples transmissor de informação para seus alunos.

“A sujeição efetivamente vale como determinação objetiva no plano do já objetivado pelo verdadeiro sujeito, revelado para além da sociedade já constituída, como aquele sujeito limite da reificação, porque ele produz reificação e se subordina voluntariamente a ela” (MAAR, 2003, p. 468).

É nessa perspectiva que Adorno (2006), enxergará a necessidade de construir uma educação que se proponha a fazer a contraposição a esse processo massificante e replicador que o sistema capitalismo tardio por meio da indústria cultural nos impõe. Portanto, uma educação que não se coloque no debate e na exposição das contradições presentes na sociedade, não terá capacidade de formar sujeitos críticos e autônomos. Logo, estará sendo conivente para que estados de barbarização continuem sendo gestados no interior das sociedades ditas democráticas.

“Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto possa parecer ao entusiasmo participativo, especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista” (ADORNO, 2006, p. 127).

A educação, nesse sentido, não deverá somente atuar como um meio para contribuir para adaptação dos sujeitos ao meio social. Eminentemente, deverá a educação ser um meio para a resistência. Resistência ao preconceito, à violência, à tirania, à coisificação do pensamento, à difusão e à naturalização da barbárie na sociedade. Deverá a educação, também, ser meio para a crítica e para a produção do pensamento crítico. Porque é através do pensamento crítico que podemos exteriorizar as contradições dos processos de formação social no qual estamos inseridos e nos constituímos enquanto sujeito. Desta forma, a crítica é o caminho para constituição do sujeito enquanto ser autônomo e ativo. Assim, só uma educação crítica e resistente pode evitar o retorno da barbárie.


REFERÊNCIAS:

Lucas de Oliveira Carvalho: Mestrando em Educação – Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Graduado em História (UNIT/2010). Colaborador do GPECS/CNPQ-UFS. Bolsista de Mestrado CAPES.

Juliana S. Monteiro Vieira: Doutoranda em Educação - Universidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS), Mestre em Educação (PPED/Unit); Graduada em Psicologia (UNIT/2014). Colaboradora dos grupos: GPHEN/CNPQ/UNIT e GPECS/CNPQ/UFS. Bolsista de Doutorado da FAPITEC/SE.

ADORNO, Theodor W. Educação e Emancipação. Trad. de Wolfegang Leo Maar. 4ªed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.

MAAR, Wolfegang Leo. Adorno, Semiformação e Educação. Educação e Sociedade. Campinas, v.24, n.83, pp. 459-476. agost, 2003.

KANT, I. Sobre a Pedagogia. Trad. de Francisco C. Fontanella. 2ªed. São Paulo: Unimep, 1999.

2 comentários:

  1. Como buscar essa educação crítica nesse contexto conservador e reacionário? E que atua diretamente na educação, não só no Brasil, como no mundo? Eis o desafio.

    Rodrigo de Souza Pain e Walace Ferreira

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  2. Como idealizar uma educação critica dentro de uma sala de aula é também fora dela, contrapondo os grupos e forças políticas que suas ideias totalitárias são facilmente aceitas por uma quantidade considerável de pessoas dentro do ambiente escolar e na sociedade brasileira como um todo, quais seriam os mecanismos que a educação se utilizaria para ser um meio de resistência aos preconceitos, a violência e a naturalização da barbárie?

    Lucas gomes da Silva Nascimento

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