Maura Regina Petruski


DO CEMITÉRIO PARA A SALA DE AULA: O ESTUDO DO ANTIGO EGITO A PARTIR DA EGIPTOMANIA



Considerando que o estudo e pesquisas sobre o antigo Egito estão crescendo nas últimas décadas no Brasil, visivelmente atentado pelo aumento exponencial do volume de variadas produções como filmes, livros, jogos e também congressos acadêmicos, cada vez mais, a riqueza e a grandiosidade dessa sociedade está sendo revelada.

A onda de propagação acontece trilhando por diversos caminhos, chegando também ao círculo do ensino fundamental e médio, quando professores aproveitando a demanda de informações divulgadas, trazem-nas para o âmbito da sala de aula, como forma de qualificar o ensino na área de História, ao mesmo tempo em que visam despertar maior atenção dos alunos para os conteúdos trabalhados, aproximando-os de sua realidade e relacionando-os com àquilo que está ao seu entorno.

Tal prática de incorporação vai ao encontro da necessidade suscitada pelos educadores em buscar possibilidades alternativas para o acesso ao conhecimento, pois estamos diante de um mundo diversificado e multicultural, no qual não se concebe mais um modelo de ensino único e exclusivo.

Assim, esse trabalho se encaminha para mostrar uma reflexão de atividade a ser desenvolvida a partir de novos enfoques sobre temas que, de certa forma, já estão consolidados no currículo de História sobre o Egito antigo, mas que, nesse caso, apresenta-o para ser estudado a partir de outro referencial: três túmulos que foram construídos com elementos do movimento da egiptomania; a pirâmide, a esfinge e o mausoléu, os quais fazem parte do Cemitério Municipal São José, da cidade de Ponta Grossa-Pr, tendo sido inaugurado em 12 de outubro de 1890.

Almeja-se mostrar uma leitura de mundo antigo a partir da contemporaneidade evidenciando que a antiguidade está distante temporalmente da atualidade, mas que suas criações se fazem presentes e que podem desconstruir a ideia de que está distante e fora do nosso alcance.

Ademais, foi-se o tempo em que o cemitério era olhado somente como um local de abrigo de corpos sem vida, passando a ser classificado como objeto de estudo por integrantes de diversas áreas de conhecimento.

Egiptomania

O interesse por conhecer a história da sociedade egípcia vem desde a antiguidade, passando pela Idade Média e ganhando apogeu a partir da expedição napoleônica, no final do século XIX, que revelou aos europeus um Egito até então desconhecido.

Foi nesse contexto que se desencadeou a egiptomania, quando símbolos egípcios passaram a ser reutilizados sob novos suportes, tais como brinquedos, fachadas e interiores de casas, vestimentas, etc.. J. Humbert nos informa que ela “se desenvolveu da conjunção entre as descobertas acadêmicas, o saber popular e os relatos de viajantes de escritores, tendo se alimentado continuamente do repertório ilimitado de crenças e mitos universais” (1994, p.08).

Raquel dos Santos Funari destaca que essa tendência,

“surge em uma junção de ciências e imaginação. Drena substância de conhecimentos acadêmicos sobre o antigo Egito, do saber popular, transmitido por viajantes e escritores, e do repertório de mitos e símbolos assim gerados. Esta fascinação pelo antigo Egito toca todas as artes no ocidente, desde a arquitetura, música, pintura, escultura até o cinema. Não há gênero que tenha escapado de sua influência. A escala de desvios toma tal proporção que desaconselha qualquer tentativa de dar exclusividade de gênero para classificar e sistematizar as práticas de egiptomania. O interesse por formas místicas e espirituais antigas sofreu o forte impacto das descobertas arqueológicas no Egito e o conhecimento da religião egípcia marcou a História de movimentos espirituais, no século XIX” (2004, p. 06).

Ao passo que a pesquisadora Margareth M. Bakos apresenta-a como “muito mais que uma simples mania, moda ou exotismo. Ela consiste no empréstimo dos mais espetaculares elementos, na essência original da arte do antigo Egito, então trazidos à vida através desses novos usos” (2005, p. 237).

Especificamente sua aplicação na arquitetura tumular teve início no Cemitério Perè Lachaise em Paris, a partir de 1803, quando Napoleão Bonaparte ordenou a construção de jazigos dentro dessa perspectiva, a qual se tornou o ponto de partida para a expansão de um novo estilo de construções mortuárias.

Lembrando que os túmulos são depositários de valores e ideias construídas primeiramente no imaginário dos homens, as quais que sofrem mutações de acordo com a mudança de valores e comportamentos dos próprios homens a partir de influências externas. O imaginário social, “além de fator regulador e estabilizador, também é a faculdade que permite que os modos de sociabilidade existentes não sejam considerados definitivos e com os únicos possíveis, e que possam ser concebidos outros modelos e outras fórmulas” (Backo, 1985, p. 23).

No Brasil, essa prática começou a aflorar no final do século XIX, inicialmente no Rio de Janeiro, chegando a São Paulo e outras localidades mais tarde. 

As construções mortuárias que se enquadram na tendência da egiptomania, chamam à atenção em relação aos que estão ao seu redor, se destacando principalmente porque os demais seguem outros estilos, além de apresentarem simbologias cristãs e notavelmente católica, identificados por meio de imagens de santos, cruzes e outros símbolos religiosos.

 

Os túmulos

Como não podia ser diferente, o primeiro jazigo que proporciona a ponte que leva a civilização egípcia foi construído em forma piramidal, e há que se reconhecer que a representação de pirâmide é a principal referência que remete ao Egito antigo e que, normalmente, se exprime como o símbolo máximo dessa cultura.

Numa base quadrangular, medindo 3m de frente por 2,5 m de fundo, as faces triangulares convergem a uma altura de quase 3 m, e numa delas se encontra o pórtico que possibilita o acesso ao interior do túmulo. A entrada é decorada com estampas de flores esculpidas no entorno de sua fachada, que se encontram separadas por ramos de folhas.

Em sua verticalidade pode ser verificado o escalonamento decorativo na forma de blocos de pedras, assemelhando-se às edificadas no Egito antigo, que se sobressaem e dão o toque mágico da construção, aguçando a curiosidade em saber o ‘por que’ esse modelo arquitetônico foi escolhido para o jazigo, sendo que esse questionamento poderá iniciar o encaminhamento das discussões relacionadas a temática, passando por outros como, as crenças egípcias, principalmente na perspectiva religiosa e no além túmulo atrelado à magia. A partir desse elemento, a hierarquia social, a tecnologia e as questões de preservação dos corpos também podem ser pontuados.



                                                 Fig. 1

                                         Fonte: a autora

O segundo jazigo, que abriga a representação de duas esfinges, está localizado a aproximadamente oito metros atrás do que possui a forma de pirâmide. Esse monumento funerário pode ser apresentado como o mais enigmático dos três que se enquadra na perspectiva da egiptomania, devido ao fato de que não encontramos nenhuma lápide, fotografia, imagens, mensagens ou dados biográficos,que indiquem sua referencia.

Lembrando que a esfinge é uma composição híbrida que comporta um corpo de leão com cabeça humana. Trata-se de uma figura real, portada com o nemés, toucado usado especificamente pelos monarcas, e a barba, que é outro atributo da realeza.

Originalmente, e por um longo tempo que se sucedeu, a esfinge tomou a forma de um animal deitado, com as pernas da frente estendidas e separadas uma das outras, sendo que algumas foram feitas caminhando e outras, mais raramente, sentadas (Bakos, 2008, p.24).

O significado da esfinge sofreu inúmeras transformações a partir de suas diferentes práticas, que lhe conferiram papéis diversos construídos sobre o sentido original egípcio, que remete à vida eterna e ao caráter de entidade amistosa e protetora. Esse sentido permaneceu até sua apropriação e transformação pelos gregos, que lhe atribuíram traços de criatura raivosa, maligna e destruidora, sendo capaz de aniquilar aqueles que não lhe desvendassem o segredo, como é caracterizada no mito de Édipo (Bakos, 2008, p. 25).

Apoiadas em colunas de aproximadamente 50 centímetros de altura, medindo 1,5 de comprimento com curvas bem marcadas nas costas e patas, as esculturas possuem contornos diferentes no formato do rosto e do nariz, como também na expressão do sorriso e no desenho da sobrancelha.

Posicionadas como guardiãs nas laterais da edificação, estão separadas por uma estela de 2 metros de altura, na qual se encontra depositada uma cruz, símbolo cristão, presente em muitas outras sepulturas do campo santo.

Na cultura egípcia, as estelas funerárias são utilizadas no conjunto da simbologia mortuária desde o Reino Antigo. Nelas eram registrados dados biográficos do falecido, sendo utilizadas tanto pelos nobres quanto pelas as pessoas de classes inferiores.

Bakos (2008, p.59) informa que, desde os finais do século XVII, quando as esfinges começaram a decorar os parques e construções da Europa, o tratamento de suas formas eram mais casuais e imaginativas, fugindo para longe do protótipo egípcio, sendo que, somente no final do século XVIII, que o retorno à origem aconteceu. Em princípio, a aparência das esfinges eram semelhantes, mas podem se distinguir muito umas das outras, pela forma, posição, toucado e papel que desempenhavam, variando segundo o contexto que eram instaladas.

O terceiro jazigo da tendência da egiptomania é o mausoléu, sendo que as colunas que decoram a sua fachada chamam à atenção para a edificação. De acordo com a pesquisadora Margateh M. Bakos (2004, p.50), a presença desse tipo de coluna nos cemitérios tem a intenção de identificar o morto como ícone da família, além de remeter a concepção cristã de que a morte é seguida pela ressurreição.
Na arte egípcia, a coluna é identificada como símbolo de força e solidez podendo referir-se tanto a uma sociedade ou de uma instituição.
                                                  

Fig.2
Fonte: a autora
Um segundo aspecto relevante da coluna é o detalhe do capitel, confeccionado em estilo lotiforme e pintado nas cores cereja e dourado que se sobressaem no conjunto arquitetônico. Essa espécie da flora egípcia, a flor de lótus, é identificada como a primeira manifestação de vida, e na perspectiva mitológica dessa civilização, o sol dela nasceu, simbolizando o renascimento.
Por fim, na parte superior do mausoléu, na direção da porta, está a representação do disco solar que, na perspectiva egípcia, significa a origem do faraó vivo.

Uma dentre outras possibilidades

Quando se entra em contato com o espaço cemiterial com o olhar de um estudioso, constata-se a potencial viabilidade desse lugar como objeto de estudo no processo de ensino para a área de História. Isso porque, os túmulos são objetos funcionais cujas características vão além de suas atribuições iniciais, que é abrigar corpos sem vida, tornando-se elementos agregadores ao saber histórico, pois, por seu intermédio, se coloca os educandos em contato com perspectivas culturais múltiplas e explorá-los promove a inclusão de análise histórica a partir de outros pressupostos.

Pode-se afirmar que, com sua adoção como instrumento de ensino, possibilita realizar a expansão do conhecimento como uma espécie de rede, uma vez que, os alunos poderão repassar a outras pessoas informações sobre esses túmulos que fogem ao padrão tradicional arquitetônico, ao mesmo tempo em que promovem a chamada de atenção para desmitificar possíveis aspectos negativos que esse local aglutina.

Nesse caso, inicialmente, não se trata de buscar a perfeição no teor artístico dos ícones presentes, mas vê-los em seu valor educativo e potencial didático, tendo-os como balizas de ponto de partida para promover reflexões sobre sociedades que os criaram e, também, as que a adotaram potencializando vasta aprendizagem.

Através deles, os alunos entram em contato com a cultura egípcia a partir de outros elementos que fogem do tradicional e que muitas vezes fazem parte das imagens conhecidas que ilustram os livros didáticos, que, normalmente, é o principal instrumento de ensino utilizado pelo professor.

Trabalhar com esses signos materializados e próximos do aluno propicia a construção um novo saber fugindo das páginas dos livros e do ambiente das bibliotecas bem como do meio acadêmico, abrindo caminho para perceber que a história dessa sociedade está presente também num ambiente aparentemente ‘hostil’, como é visto o cemitério, problematizando-a a partir de novos instrumentos que fazem parte da vida dos agrupamentos humanos que nem sempre é identificada como tal.

Caso não seja possível realizar uma saída de campo com os alunos até ao cemitério, o professor pode trazê-lo a sala de aula através de imagens, fazendo com que essa ferramenta possa ser utilizada como metodologia de ensino nas aulas de História. Nesse caso em específico, é uma forma de renovar o conteúdo de história da civilização egípcia sustentada pelo movimento da egiptomania.

Considero esse como um método alternativo e que gera aspectos positivos no processo de ensino, na medida em que parte de um referencial que está mais próximo a vivência do aluno, auxiliando-o a fazer relações entre contextos históricos distintos, levando a percepção de que essa sociedade ainda está presente na atualidade.

No entanto, antes de fazer o desenvolvimento da atividade, pode-se fazer uma consulta prévia com os alunos para saber quais informações eles têm sobre esses ícones, bem como sua utilização como elemento simbólico da sociedade nilótica, visto que são referências milenares na tradição egípcia.

Por intermédio da produção do trabalho de Raquel dos Santos Funari, intitulado ‘Visões Modernas do Egito Antigo: considerações a partir de uma pesquisa de campo’, é possível entrar em contato com um modelo de referência para diagnosticar o conhecimento prévio dos alunos a respeito da história da civilização egípcia, pois a autora apresenta algumas categorias que podem ser verificadas no que ela chama de ‘percepções contemporâneas que moldam o passado egípcio’ (2011, p.5).

A autora revela que o resultado da pesquisa foi construída por diversos sustentáculos, ou seja, a partir das informações divulgadas por intermédio dos meios de comunicação, pela educação formal e também informal, além dos interesses particularizados dos próprios alunos que buscam conhecer mais sobre esse assunto.

 

 Em relação ao uso de elementos da cultura egípcia no espaço cemiterial não se pode afirmar com clareza que está relacionado a questões que remetem a religiosidade, haja vista que os fundamentos de sustentação desse pilar social são antagônicos e divergem quanto a princípios, mas, sem sobra de dúvida, o mistério que envolve a morte é que traz às marcas dessa sociedade milenar a contemporaneidade, que se instalou num local que o morrer não representa somente o fim, mas também um novo ponto de informação para pensar o indivíduo e seu meio, ao mesmo tempo em que evidencia o pluralismo em relação à morte.


Por fim, essa leitura possibilita um redirecionar de ‘vida’ ao que somente estava ligado à morte. É verificar a polifonia de vozes que constroem a História, abolindo a ideia de que essa disciplina é computada por dados prontos e acabados, mas evidenciando experiências de vidas, que podem ser desenvolvida pela modalidade investigativa que interroga o passado e mostrar como foi erigida uma cultura ao longo do tempo.

Referências

Maura Regina Petruski é professora do departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)

BACZKO, Bronislaw. Imaginário Social. Enciclopédia Einaudi. Lisboa:Antropos, 1985.

BAKOS, Margaret Marchiori. Fatos e mitos do antigo Egito Antigo. Porto Alegre:EDIPUCRS, 2008.

FUNARI, Raquel dos Santos. Visões Modernas do Egito Antigo: considerações a partir de uma pesquisa de campo. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011.

HUMBERT, Jean Marcel. Egyptomania: Egypt in Westem Otawa: Éditions e La Réunion des Musées Nationaux. 1994.





Um comentário:

  1. Boa noite Maura Regina, muito interessante a sua pesquisa. Tenho bastante estima por esse tema e também por ritos fúnebres. Mas ainda hoje há preconceito em sala de aula para tratar sobre esses temas pós-mortem. Mas o que me inquietou é como trazer isso para a sala de aula? Pois pouco ou nada se ver no ensino regular sobre artes cemiteriais. Quais as metodologias você usaria para trabalhar tal tema?

    Cordialmente, Antonia Stephanie Silva Moreira.

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