Leonardo Paiva do Monte


AS NARRATIVAS DE DIVULGAÇÃO DA HISTÓRIA


A escolha desta temática surgiu de uma inquietação relativa às formas de como as narrativas acerca de temas históricos são construídas fora do meio acadêmico, em obras de divulgação, principalmente, escritas por jornalistas. Assim como pelo aumento de publicações e consumo de tais produtos culturais vistos nos últimos anos. O jornalista teria suporte para construir uma obra historiográfica? Acostumado com eventos e a notícia imediatas, como trataria o passado? Como o jornalista produz sua narrativa historiográfica? Qual o método de trabalho de um jornalista? Qual o peso da competitividade típica da profissão? Como se dá o relacionamento do jornalista com suas fontes? São muitas as questões que se conectam a esta historiografia popular [PALETSCHEK, 2011]. Por isso, dedicar-nos-emos a compreender o potencial das narrativas e como são empregadas quando divulgam o conhecimento histórico.

Narrativas – chaves de compreensão
 Inicialmente, vale apontar que a narrativa não é um recurso específico apenas do conhecimento histórico, mas, como afirma Roland Barthes [1971, p.79], “está presente no mito, na lenda, na fábula, no conto, na novela, na epopeia, na história, na tragédia, no drama, na comédia, nas histórias em quadrinhos, na conversação”. A narrativa dá sentido ao mundo em que vivemos, explica acontecimentos e permite a emergência de outras histórias.

A narrativa designaria “a organização de materiais numa ordem de sequência cronológica e a concentração do conteúdo numa única história coerente, embora possuindo subtramas” [Stone, 1991, p. 13 – 14]. A história narrativa possibilita a empatia compreensiva com outro, permite trazer emoção e a sensibilidade para o texto. Para José D’Assunção Barros, “narrar é configurar ações humanas específicas, mas é também discorrer sobre significados, analisar situações. Inversamente, discorrer sobre significados e analisar é também é uma forma de narrar” [2011, p.07]. As obras de divulgação tratam de temáticas que são conhecidas de seu público, de comemorações e personagens e eventos do passado, porém procuram trabalhar com as possibilidades da linguagem, tornando o texto mais acessível ao leitor, já que o público-alvo é o consumidor comum, não especializado.

O historiador Hayden White [1998], ao definir o que são as narrativas históricas, causou alvoroço no meio acadêmico, entre os consideram suas obras como o próprio passado ou como a verdade do passado por que utilizaram um método científico. Para White, o que possuímos são vestígios presentes aos quais o historiador designa um significado simbólico, em que a única forma de apreender o passado seria por meio de um relato: a disciplina histórica deve se identificar com a narração para tornar o passado inteligível.

“De um modo geral houve uma relutância em considerar as narrativas históricas como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com seus correspondentes na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências” [White, 1998, p. 98].

Ao identificar a forma de narração da história com a literatura, White postulou uma convergência disciplinar entre história e crítica literária. Somente seria possível conhecer o passado através da narrativa.
Paul Veyne [1998], as explicações que a história produz são apenas as formas como a narrativa tem de se organizar em uma intriga compreensível. E ainda argumenta que

“A história é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso. Já que é, de fato, uma narrativa, ela não faz reviver esses eventos, assim como tampouco o faz o romance; o vivido, tal como ressai das mãos do historiador, não é o dos atores; é uma narração que permite evitar alguns falsos problemas. Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória” [Veyne, 1998, p. 18].

A narração dos eventos é formada por personagens, que podem ser tanto indivíduos como instituições, que agem com outros personagens, possuem motivação e intenções diferentes. As “notícias” do passado são dadas através da narração feita.

Comentando sobre o trabalho historiográfico que o jornalista Eduardo Bueno realiza, por exemplo, o historiador e professor Francisco M. P. Teixeira afirma que o “que Bueno faz tem alto valor, no sentido de divulgar a história”, o historiador reconhece a amplitude da obra do jornalista, e continua no comentário, “ele nunca se declarou historiador, portanto a literatura que ele escreve não é originária da pesquisa, portanto não agrega conhecimento — mas divulga fatos”, divulgar fatos, narrar fatos.

Em contrapartida, a historiadora Mary del Priore, comentando sobre o livro de Eduardo Bueno, “Brasil – uma história”, publicado em 2003, nos diz que

“Independente das abordagens teóricas consagradas pelas academias, destacado da pesquisa histórica que se faz nas universidades, o autor identifica-se ao espírito de abertura e descoberta que domina nossa época. Exemplo de coerência intelectual, ele lê o Brasil numa chave jornalística onde fatos e personagens sublinham o peso do passado sobre condutas e decisões coletivas, assim como a permanência das decisões individuais sobre o curso da história. Menos preocupado em interpretar a significação das estruturas, ele extrai habilmente lições de fatos históricos” [Priore, 2013].

Refletir sobre como escrever a história é obrigação dos historiadores. A teoria literária tem indicado possibilidades para que os resultados da pesquisa histórica cheguem ao público de maneira inteligível e em acordo com as diferentes consciências históricas dos destinatários.

Para os consumidores / leitores comuns de história, a escrita histórica não difere da jornalística. As obras escritas por não historiadores tratariam de obras históricas. Produzidas para o consumo, demandaram trabalho, pesquisa e espaço no mercado. Bem construídas, fruto de pesquisa bibliográfica e bem narradas, as obras de divulgação seriam o início para uma problematização mais aprofundada acerca das temáticas historiográficas. Uma publicação para suprir a curiosidade e o interesse do leitor pela história, assim, a partir da narrativa feita por não-historiadores seria a porta de entrada para estudos e pesquisas mais acadêmicos e historiográficos. Desse modo, conclui-se que “as liberdades narrativas inerentes à escrita literária podem ter valor propedêutico – o de pavimentar o caminho da compreensão histórica” [Glezer, Albieri, 2009, p. 30].

As narrativas de divulgação
As publicações de divulgação histórica seriam reflexo da época em que estão inseridos seus autores, com um linguajar rápido e direto, a “notícia” histórica é narrada nestas obras. As obras de divulgação se apegam ao curioso, ao que é exótico, ao que é diferente do que percebemos hoje. Semelhante maneira em que um jornalista dá uma notícia ao vivo, com detalhes e em busca da explicação, o jornalista, ao escrever história, quer dar aquela notícia, mostrando os fatos que levaram a tal acontecimento, tratando da vida das “celebridades” da época e relatando os acontecimentos, acidentes, crimes e festividades.

Que motivos levam o leitor a buscar informações sobre o passado nestes livros e o que isso implica na produção acadêmica e não acadêmica? Leitores “que se interessam pelos acontecimentos do passado, mas não estão habituados nem dispostos a decifrar a rebuscada linguagem acadêmica”, como afirma Laurentino Gomes, um jornalista historiador [2008, p. 20].

Todos eles têm a pretensão de descrever a história do Brasil - a “verdadeira história” do Brasil, como está no subtítulo do primeiro livro de Eduardo Bueno (1998).  Ou como afirma Laurentino Gomes (2008, p. 19), livros que fazem um resgate da história, que devolvem “seus protagonistas à dimensão mais correta possível dos papéis que desempenharam”. Nessas obras, o conhecimento do passado se faz História ou se transforma em algo diferente.

Um aspecto, frequentemente, encontrado nas narrativas de divulgação é o apego ao exótico, ao inusitado, ao imaginativo. Vale lembrar que a característica do exótico se relaciona mais ao presente em que se lê a obra do que ao período retratado por ela. Lucas Figueiredo, em seu livro “Boa Ventura!”, publicado em 2011, apresenta algumas atividades que o rei de Portugal poderia realizar.

“Se pudesse escolher, Sua Majestade Fidelíssima talvez tivesse preferido passar o dia a tocar violoncelo ou a traduzir mais uma peça de Shakespeare para o português, trancado no gabinete real. Disso era o que d. Luís I gostava e fazia de melhor. Mas naquele princípio de fevereiro de 1876, sua agenda incluía uma tarefa que ele não apreciava e que definitivamente não era sua especialidade: governar Portugal” [Figueiredo, 2011].

A descrição realizada pelo autor são apenas suposições imaginativas. Emprega alguns hábitos do monarca português de modo a criar um cenário onde a falta de habilidades nas questões administrativas faça sentido.

Ainda no terreno do curioso, na narrativa que conta sobre o grito do Ipiranga, as primeiras palavras de Gomes, no livro “1822”, publicado em 2010, são sobre a dor de barriga do Imperador:

“O destino cruzou o caminho de D. Pedro em situação de desconforto e nenhuma elegância. Ao se aproximar do riacho do Ipiranga, às 16h30 de 7 de setembro de 1822, o príncipe regente, futuro imperador do Brasil e rei de Portugal, estava com dor de barriga. A causa dos distúrbios intestinais é desconhecida [Gomes, 2010, p. 14].

Entre várias possibilidades narrativas para apresentar os acontecimentos que levaram à Independência do Brasil, o autor buscou chamar a atenção com um acontecimento irreverente. Há precisão de dia e hora do acontecimento. Constrói sua narrativa a partir de testemunhos de pessoas que estavam presentes na ocasião, retirados de seus escritos. O autor não busca criticar suas fontes ou mesmo questionar, mas já considera esses testemunhos como a verdade do que aconteceu.

Além do exótico para delinear a história, o passado é tornado em uma sequência de aventuras. Procura-se construir uma narrativa em que a história é simplificada às causas e efeitos, atitudes que geram conflitos e paz. Busca no relato da história uma grande aventura, selecionando os eventos e personagens dentro de uma cronologia previamente determinada pelas escolas historiográficas.

“A história dos inconfidentes de Vila Rica, contada nas próximas páginas, é a de uma aventura. É a de um sonho de um grupo de loucos, uma conspiração perigosa que custou a todos os envolvidos um pedaço de suas vidas. A um, a própria vida. Para nós, tanto depois, é um eterno imaginar do que poderia ter sido. Mas é, também, uma revelação da origem de tantos dos vícios que ainda assolam o Brasil” [Doria, 2017].

Palavras como “loucos”, “conspiração”, “perigosa”, por exemplo, criam um enredo de mistério e conflitos. Já se percebe de antemão que a aventura conduzirá o passado descrito nos textos de divulgação. Além desse aspecto, Pedro Doria cria uma conexão entre a aventura de outrora com o presente, os “vícios” ainda presente na sociedade brasileira.

Na introdução de sua obra, “1808”, Laurentino Gomes comenta sobre a bibliografia utilizada escrevendo que além dos “preciosos” livros de historiadores como Jurandir Malerba, Jean Marcel Carvalho França e Lília Schwarcz, utilizou “algumas fontes de pesquisa não convencionais, ainda não reconhecidas pela historiografia oficial, mas que se revelaram de extrema utilidade pela facilidade de acesso e pelo volume de informações que oferecem” [Gomes, 2008, p. 23]. Com isso, busca justificar o uso da Wikipédia em suas pesquisas, por exemplo, e alerta que este site “precisa ser consultado com cautela”. O autor está ciente das críticas que podem surgir a partir de seus métodos de “pesquisa” e já tenta se justificar de antemão. Uma justificativa muito mais direcionada para os historiadores do que para os leitores de fora da academia.

Outro recurso encontrado nos livros de divulgação é a nomeação de historiadores e a ajuda que prestaram, seja como orientação ou revisão técnica. Não são resenhas ou comentários após a publicação do livro, mas é um auxílio durante a escrita do texto.

“Este livro assenta-se sobre outros livros e outros textos. Baseia-se nos numerosos autores que em crônicas, cartas, artigos de imprensa, relatos de viagem e estudos históricos [...]. Quando a conversas ao vivo, não o diálogo silencioso com os livros, os historiadores Maria Luíza Marcílio e Marco Antonio Villa me dirimiram dúvidas e forneceram indicações bibliográficas” [Toledo, 2003].

Estas obras ganham legitimidade ao ter historiadores em sua elaboração, a citação de um profissional de academia procura aumentar a confiabilidade da narrativa apresentada. Os historiadores não estão ali como personagens a serem criticados, mas como autoridades em determinados assuntos. Estas obras buscam por credenciais acadêmicas, além do uso de bibliografia historiográfica, busca-se a aprovação de historiadores.

Neste artigo, procurou-se apresentar algumas estratégias utilizadas na composição das narrativas de obras de divulgação. O passado, na divulgação, ganha cores ao ser enquadrado em uma aventura repleta de descrições curiosas e de construções imaginativas. Os historiadores aparecem nestes textos como garantia de veracidade e cientificidade do que é narrado. Podemos refletir se quanto mais se falar de história é melhor. Nem sempre. As obras de divulgação e a facilidade de aquisição de bens culturais permitiram um maior acesso ao conhecimento histórico por um grande público. Cabe aos historiadores avaliarem esse conhecimento, pois deve assumir alguns compromissos éticos e morais, evitando, assim, a difusão de preconceitos, a negação de violências do passado, a defesa da manutenção da desigualdade e as justificativas das explorações, todos aspectos que podem se esconder por traz de uma narrativa aventuresca de grande circulação.


Referências
Leonardo Paiva Monte é mestre em História Social [USP].

BARROS, J. “Paul Ricoeur e a Narrativa Histórica”. In: História, imagem e narrativas. Nº12, abril/2011.

BARTHES, R.; GREIMAS.  Análise estrutural da narrativa. Petrópolis:  Vozes, 1971.

BUENO, E. A viagem do Descobrimento: a verdadeira história da expedição de Cabral. Rio de Janeiro: Objetiva, 1998.

BUENO, E. Brasil, uma história. São Paulo: Leya, 2013.


FIGUEIREDO, L. Boa Ventura! A corrida do ouro no Brasil (1697-1810). Rio de Janeiro: Record, 2011.

GLEZER, R.; ALBIERI, S. O campo da história e as “obras fronteiriças”. In: Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, v.48, p. 13-30, 2009.

GOMES, L. 1808 - como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a História de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.

GOMES, L. 1822 - como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil – um país que tinha tudo para dar errado. Rio de Janeiro: Ed. Planeta, 2010.

PALETSCHEK, Sylvia. Introduction: why analyse popular historiographies? In: _________ (Org.). Popular historiographies in the 19th and 20th centuries: cultural meanings, social practices. Oxford: Berghahn, 2011. pp. 01 - 19.

PRIORE, M. Uma história para ler. In: BUENO, Eduardo. Brasil: uma história. São Paulo: Leya, 2013.

STONE, L. “O ressurgimento da narrativa: reflexões sobre uma nova velha história.”  RH – Revista de História, Campinas, n.2/3, p. 13-37,1991.

TEIXEIRA, F. Entrevista concedida a Juliana Resende ao Portal Educacional.

TOLEDO, R. P. A capital da solidão - uma história de São Paulo das origens a 1900. São Paulo: Objetiva, 2003.

VEYNE, P. Como se escreve a história. Foucault revoluciona a história. Brasília: UnB, 1998.



2 comentários:

  1. Ola Leonardo, seu texto me chamou atenção por tratar de um tema importante na construção do conhecimento histórico hoje, e que tem sido objeto de debate entre professores e estudantes. Sua abordagem das obras que elencou é muito boa, e poderíamos colocar nesta relação outros mais, sejam divulgadores, diletantes ou mesmo historiadores profissionais que se voltaram à popularização da história. Este tipo de divulgação menos apurada ou não acadêmica da história não é um fenômeno do nosso tempo, mas o que temos observado em alguns casos é um processo que mistura divulgação histórica com revisionismo, quase sempre oportunista. Assim, creio que é preciso separar o que é um conhecimento histórico que não segue os preceitos da ciência histórica, mas tem sua pertinência, daqueles que se pautam pelo negacionismo e pela revisão ideológica do passado. Queria saber o que pensa disso. Abraços e parabéns pela pesquisa.
    Fabio Luciano Iachtechen

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    1. Olá, Fábio.
      Eu pesquisei, especificamente, os jornalistas que escrevem história. Ao elencar autores e obras, pude encontrar aqueles que se aproveitam de documentos e pesquisas acadêmicas para fundamentar seus trabalhos, por mais irreverentes que sejam seus textos, como o Laurentino Gomes e o Eduardo Bueno. Suas narrativas têm algum compromisso com o conhecimento histórico (apesar de "deslizes" anacrônicos) e de alguma forma sua linguagem pode ajudar a divulgar a história.
      Por sua vez, um autor como o Leandro Narloch, por exemplo, aparece para negar pesquisas e ignorar documentos. Faz um revisionismo lastimável sobre o passado. Com um autor dessa categoria não se ergue um diálogo, mas críticas. O que ele faz é danoso para o conhecimento.

      Atenciosamente,
      Leonardo Paiva

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