Fabiana Wentz


A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE BRASILEIRA REPRESENTADA NA OBRA MACUNAÍMA, DE MÁRIO DE ANDRADE



Os fatos que contribuíram para a construção e a formação da identidade do Brasil são estudados pela história. Já a literatura, por meio da subjetividade das palavras, permite que o leitor reflita e compreenda de outro viés essa história. Desde que o Brasil foi descoberto, a literatura brasileira e a história do país andam juntas, já que a partir da Carta escrita por Pero Vaz de Caminha, descrevendo a terra encontrada, se inicia a sua representação nos escritos literários. Nas primeiras obras os autores se inspiravam muito nos modelos europeus, isto é, a literatura seguia aquilo que se produzia nos países estrangeiros. Insatisfeitos com os rumos que a arte tomava, alguns autores e artistas promoveram a Semana de Arte Moderna, em 1922, introduzindo a primeira fase do Modernismo Brasileiro, que ocorreu entre os anos de 1922 e 1930.

Com o objetivo de reconstruir a cultura brasileira sobre bases nacionais, eliminando a situação de colonizados e o apego aos valores estrangeiros, autores como Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Mário de Andrade se destacaram nessa fase. A fim de solidificar os ideais modernistas, surgiram diversos grupos, movimentos, revistas e manifestos que divulgaram as novas ideias.

Nesse cenário, um romance peculiar tem papel fundamental. A obra Macunaíma, de Mário de Andrade, publicada em 1928, apresenta um personagem contraditório, que usa uma linguagem rapsódica e inventiva, atrelada ao estudo feito pelo próprio autor sobre a identidade linguística brasileira.

A história tem início com o nascimento de Macunaíma, descrito como um herói.
“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói da nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma (ANDRADE, 2016, p. 39).”
Assim, Macunaíma é retratado em dois momentos nessa obra. No primeiro, ele representa, junto com sua mãe e irmãos, índios que viviam às margens dos rios numa tribo Amazônica brasileira. Macunaíma é negro e “o herói da nossa gente” por retratar o povo brasileiro a partir de sua miscigenação cultural e racial.
Depois da morte de seu filho e de sua mulher, Macunaíma e os irmãos, Jiguê e Maanape, vão para São Paulo em busca de uma pedra, a Muiraquitã, que o personagem recebera de sua mulher. Essa pedra era um amuleto que vai parar nas mãos do vilão da história, o gigante comedor de gente, Venceslau Pietro Pietra. Aqui, surge um novo ambiente geográfico em que já era possível perceber o grande aumento de fábricas, a expansão do comércio, o avanço das tecnologias. Um Brasil mudado na década de 20.
“A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhas rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram clácsons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças-pardas não eram onças-pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curututás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés... Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! (ANDRADE, 2016, p. 68).”
Nesse período de transição, os três irmãos encontram um local com água encantada onde Macunaíma se lava e fica branco. Por Macunaíma já ter se lavado e a água estar acabando, um dos irmãos não consegue se lavar a ponto de ficar branco e fica amarelado. O outro irmão, então, continua preto. Os três representam, assim, a população brasileira formada por europeus, índios e negros. Dessa maneira, “[...] pretendem corporificar imagens mais ou menos estereotipadas de nações” (KOTHE, 1987, p. 55). Segundo Segolin (1978, p. 108), “[...] a personagem, ao se modificar, questiona não apenas a personagem que foi ou que é, mas a própria crítica da personagem, impondo posturas críticas inteiramente novas”.

Nessa formação, em que brasileiros não possuem uma civilização própria, é que Mário de Andrade refere-se a Macunaíma como “herói sem nenhum caráter”, representando uma cultura ameaçada pela civilização urbana e pelo progresso tecnológico e industrial. Segundo Kothe (1987, p. 89), “Trata-se de uma convicção em torno da estrutura, dos valores e dos caminhos da sociedade”. Há, portanto, a representação do choque do índio amazônico com a tradição e cultura europeia. No início, os índios eram pardos e com a chegada do europeu, há a construção do povo brasileiro através da miscigenação. No livro, a ida para São Paulo permite analisar de que forma a vinda dos imigrantes modificou a vida de quem já vivia no país. Os índios, bem como Macunaíma e seus irmãos, tiveram que adequar-se aos costumes de uma sociedade urbana e rural imposta a eles.

Mário de Andrade criou o personagem principal inspirando-se em uma pesquisa sobre as lendas amazônicas, recolhidas por Koch-Grümberg e publicadas em Von Roraima Zum Orenoco, em 1916. O nome Macunaíma tem significado literal “O grande mau”, sendo um deus indígena que reúne em si o bem e o mal. A diversidade trazida por meio dessas lendas mostra a tradição de várias regiões do país, o que faz de Macunaíma um representante do povo brasileiro e do homem latino-americano. O herói aventureiro é ao mesmo tempo sincero e mentiroso, malandro e otário, caracterizando-se também como um mulherengo e assanhado. Sua frase “Ai, que preguiça”, que se repete ao longo da obra, demonstra o quanto o personagem se aproxima da figura indígena, já que esses resistem em entrar no mundo civilizado da produção.

O livro é também uma síntese da Língua Portuguesa falada no Brasil, com as variações regionais, as influências estrangeiras e as alterações oriundas da criatividade popular. Beth Brait afirma que “Nesse mundo de palavras, nessa combinatória de signos, o leitor vai se alfabetizar, vai ler o mundo e decifrar a sua existência” (BRAIT, 1990, p. 66). Ao ler a obra, é perceptível a mistura de vocabulário indígena, “bolo de aipim” (ANDRADE, 2016, p. 97), africano, “urucungo” (ANDRADE, 2016, p. 95), ditos populares, “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são” (ANDRADE, 2016, p. 109), e gírias, “chinoca” (ANDRADE, 2016, p. 95). Pelo fato de valorizar o modo de falar no país, há uma crítica à norma culta cultivada no Brasil, como é possível identificar neste trecho:
“Destas e daquelas nos inteiramos, solícito; e nos será grata empresa vo-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperecível galhardia, se intitula: língua de Camões!” (ANDRADE, 2016, p. 111).

Conforme Bosi (2017), o emprego diferenciado da fala brasileira em nível culto estava ligado às ideias de Mário de Andrade, que buscava a consolidação das conquistas do Modernismo na esfera dos temas e do gosto artístico.
“Muito da teoria literária e musical escrita por Mário de Andrade na década de 30 centrou-se nesse problema, prioritário para o escritor e compositor brasileiro, dividido entre um ensino gramatical lusíada e uma práxis linguística afetada por elementos indígenas e africanos e cada vez mais atingida pelo convívio com o imigrante europeu” (BOSI, 2017, p. 378-379).
É provável que a intenção do autor ao escrever esta obra foi abordar o Brasil de modo crítico, através de um personagem único, que valoriza a cultura do país e a põe em igualdade com as dos demais países.  O movimento antropofágico que se deu nesta história pretendeu aproveitar a cultura que os imigrantes trouxeram, transformando-a em uma cultura nacional, algo próprio do nosso país.
A partir desses aspectos, a obra Macunaíma faz uma reflexão acerca do que era o povo brasileiro naquela época. O personagem é a representação do caráter do brasileiro, que não estava definido.  Dessa maneira, percebe-se uma relação direta entre o personagem e a situação de construção do país na época, pois ambos apresentavam-se como imaturos.



Referências:

Fabiana Wentz é mestranda do Mestrado Profissional em Letras, da Universidade Feevale.

ANDRADE, Mário de. Macunaíma. 2. ed. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 51. ed. São Paulo: Cultrix, 2017.

BRAIT, Beth. A personagem. 4. ed. São Paulo: Ática, 1990.

KOTHE, Flávio René. O herói São Paulo: Ática, 1987.

SEGOLIN, Fernando. Personagem e anti-personagem. 1. ed. São Paulo: Cortez & Moraes, 1978.


6 comentários:

  1. Taís Cristina Melero8 de abril de 2019 às 17:46

    Parabéns pelo texto, Fabiana!

    Contudo, para além da narrativa literária e das questões linguísticas enfatizadas por Mário de Andrade, como a obra Macunaíma permite compreender o contexto sociopolítico brasileiro em meados da década de 1920? Ademais, qual reflexão Andrade suscita ao enfatizar a construção imagética de Macunaíma, em relação à miscigenação?

    Taís Cristina Melero.

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  2. Olá!
    A questão da emigração que você apresenta no texto de "Macunaíma" é o que a Estética da Recepção denomina "efeito do real", uma inserção de elementos e/ou fatos históricos em narrativas que criam efeitos de realidade, pois remetem a acontecimentos de um determinado tempo. Além da questão da imigração, há um outro efeito de real no texto que poderia ser explorado de forma interdisciplinar nas aulas de história?

    Márcia Rohr Welter

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    1. Olá, Márcia! Agradeço pela leitura de meu texto!
      A obra Macunaíma permite que, além da questão da emigração, em um trabalho interdisciplinar, se pense sobre a formação do povo brasileiro, uma mistura de negros (trazidos escravizados da África), brancos (vindos da Europa) e índios (nativos do território brasileiro). Aqui, já é possível problematizar a questão do preconceito racial, uma vez que os personagens que representam as raças (Macunaíma, Jiguê e Manaape) não estão em condição de igualdade. Além disso, por meio da obra, é possível compreender a formação dos grandes centros urbanos, com o desenvolvimento da industrialização. A divulgação do movimento da antropofagia e as mudanças que o Modernismo trouxe historicamente para o país também podem ser abordadas. Ainda, a narrativa traz vestígios do folclore brasileiro, permitindo um trabalho com mitos e lendas.
      Espero que tenha respondido sua questão. Fico à disposição.
      Atenciosamente, Fabiana Wentz.

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  3. Olá, Taís! Agradeço pela leitura de meu texto!
    Sobre a primeira pergunta, por volta de 1920, boa parte da população brasileira ainda estava envolvida em atividades ligadas à agropecuária, característico de um passado rural da colônia e do império. No entanto, o período teve um crescimento populacional nos centros urbanos do país que, por meio da industrialização, modificou a vida nas metrópoles, principalmente do Rio de Janeiro e São Paulo. A obra Macunaíma vem, nesse sentido, demonstrar a construção da cidade e a vinda do povo para os grandes centros urbanos. O personagem principal sai de Roraima com seus irmãos e vai para São Paulo, onde conhece o espaço urbano, realidade completamente diferente. Além disso, na época, os ideais revolucionários do Modernismo eram protagonizados por meio das vanguardas, que precisavam de ambientes urbanos e modernos para serem compreendidos, como é o caso do movimento Futurismo. Na obra, esse movimento é perceptível pela surpresa dos personagens ao chegarem num grande centro urbano.
    Sobre a segunda pergunta, Andrade utiliza o meio literário para fazer refletir sobre a composição do povo brasileiro, visto que a população é uma mistura de negros (trazidos escravizados da África), brancos (vindos da Europa) e índios (nativos do território brasileiro). Assim, a poça de água com propriedades extraordinárias faz uma alusão à formação miscigenada do povo brasileiro, já que Macunaíma, ao se banhar nessas águas, torna-se loiro; Jiguê, o segundo a banhar-se, fica com a cor de bronze, representando o índio; e, Manaape, que simboliza o negro, só embranquece as mãos e a sola dos pés.
    Espero ter conseguido esclarecer as questões propostas. Fico à disposição.
    Atenciosamente, Fabiana Wentz.

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  4. Parabéns pelo excelente trabalho.Gostaria de perguntar quais às relações o professor poderia estabelecer com a obra de Mário de Andrade e o contexto de industrialização e "progresso" da primeira República?
    Taynara Zulato Rosa

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  5. Olá, Taynara! Agradeço pela leitura de meu texto!
    Na obra Macunaíma, o personagem sai com seus irmãos de Recife rumo à São Paulo, local em que os movimentos futuristas já se destacavam e, consequentemente, se desenvolvia a industrialização. Nesse sentido, o professor pode relacionar trechos do livro que demonstram essa chegada em São Paulo. Além disso, foi lançado um filme em 1969, com direção de Joaquim Pedro de Andrade, que retrata esse progresso e a chegada dos personagens em São Paulo. Traz também as críticas sociais da obra e mensagens políticas adaptadas pelo produtor. Para o professor, torna-se interessante pensar em atividades que liguem a obra escrita ao filme, visto que visivelmente a produção fílmica apresenta cenas claras sobre esses fatos históricos. No entanto, é preciso fazer uma seleção de cenas para a sala de aula, pois o filme contém cenas de nudez e sexo.
    Atenciosamente, Fabiana Wentz.

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