Rodrigo Conçole


O ENSINO DE ALGUNS PRINCÍPIOS TEÓRICOS DA ESCOLA DOS ANNALES A PARTIR DA OBRA DE JOSÉ SARAMAGO


No séc. XX, na França, temos o surgimento de um movimento historiográfico conhecido como Escola dos Annales, sob a liderança dos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre. Eles tinham como objetivo remodelar as pesquisas históricas visando construir uma história total na qual a sociedade fosse analisada em todos os seus aspectos.

Como a formação do historiador ou do professor de história tem como um de seus fundamentos mais importantes o estudo da Teoria da História, isso envolve o aprendizado das ideias que nortearam o trabalho de movimentos historiográficos como os da Escola dos Annales. Isso é um elemento essencial na formação profissional de modo que não pode ser negligenciado.

Contudo, apesar da importância do estudo da Teoria da História, a verdade é que muitos estudantes não só não gostam da matéria, mas tem grande dificuldade no aprendizado desta matéria. Assim, acreditamos que o uso da literatura, acompanhado dos textos teóricos, pode facilitar a compreensão de algumas questões.

Para isso escolhemos a obra de José Saramago como base para este trabalho pelo fato de que suas obras, principalmente aquelas de caráter histórico tem como fundamento algumas das ideias que nortearam o trabalho dos historiadores da Escola dos Annales. Assim, vamos dividir este texto em duas partes. Na primeira exporemos as relações do escritor português com o trabalho desses historiadores. Na segunda, apresentaremos algumas das ideias que podem ser discutidas a partir de seus romances.

Saramago e a Escola dos Annales
É muito comum, nos estudos literários, encontrarmos associações entre a obra de Saramago com os princípios os Annales:

“Assim, o projeto ensaístico que emerge de História do Cerco de Lisboa parece buscar munição nos postulados do movimento Nova História, protagonizado pelos intelectuais franceses da Escola de Annales (Jacques Rancière, Michelet, Foucault, Paul Veyne, Jacques Le Goff) [...].” [Wandelli, p. 183]

Contudo, pelo exemplo citado, vemos que existe um grande desconhecimento em relação a essas relações já que a autora do artigo não tem certeza se Saramago se baseou no pensamento desses autores. Em outros casos, vemos pesquisadores que agem como se eles tivessem escolhido os Annales como referencial teórico por conta da similaridade de pensamento, e não porque o autor se baseou neles.

O fato é que Saramago foi um conhecedor do pensamento dos Annales. Isso se deu de duas formas. Em primeiro lugar dentro do seu trabalho de tradução. Dentre as muitas obras que ele traduziu temos o livro “O tempo das catedrais: a arte e a sociedade 980-1420” de Georges Duby, publicado em 1978 pela Editorial Estampa. Duby foi um dos grandes nomes da chamada segunda geração dos Annales. 

O segundo ponto de contato foi por meio da leitura. As reflexões do escritor referentes à História, que se apresentavam durante a escrita de seus livros, o levaram de encontro à obra destes historiadores:

“Foi isso que me levou a esse sentido da História, que para mim era confuso, mas que depois vim a entender, em termos mais científicos, a partir do momento em que descobri uns quantos autores (os homens dos Annales, os da Nouvelle Histoire, como Georges Duby ou o Jacques Le Goff), cujo olhar histórico ia por esse caminho.” [Saramago apud Reis, 80]

Infelizmente, como não existe publicado nenhum catálogo da biblioteca de Saramago, não é possível ter uma ideia mais precisa dos livros que ele leu ou se ele leu a revista dos Annales. De qualquer modo, ele deixa bem claro que o sentido de História presente nos seus livros é baseado neles. Assim, mesmo sendo um militante comunista, ao elaborar sua obra, ele não se baseou nos princípio do neorrealismo, mas no dos Annales.

Principio teóricos dos Annales presentes na obra de Saramago
Diante da brevidade do texto não podemos discutir todos os pontos de ligação que podem ser trabalhados. Vamos apresentar alguns dos mais importantes que servirão de base quem quiser trabalhar outros assuntos. Em primeiro lugar temos a questão da história-problema. Isto é, da crítica a história factual em favor de uma que seja:

“interpretativa, problematizada, apoiada em hipóteses, capaz de recortar o acontecimento através de novas tábuas de leitura, e, na verdade, capaz de problematizar este próprio gesto de recortar um acontecimento.” [Barros, 306]

No romance “História do Cerco de Lisboa”, por exemplo, em vez de uma historia factual, nós temos a história de um revisar que reescreve a história ao acrescentar um não ao texto, negando a ideia de que os cruzados teriam ajudado os portugueses a conquistar a cidade. Isso leva a toda uma reflexão sobre a escrita da história como algo interpretativo, sobre o que é a verdade.

Além disso, é importante se destacar o fato de que Saramago não é o único escritor que realiza esse diálogo com a História. Ao longo do século XX surge o que a crítica literária chama de novo romance histórico. Eles tem um caráter metaficcional e “levantam questões a respeito da dicotomia entre a literatura e a história.” [Araujo, p. 2535]. O que implica uma aproximação das duas e o questionamento da história oficial:

“A metaficção historiográfica se apropria das mesmas fontes e por vezes a mesma forma que o discurso histórico. Com isso destaca que a concepção da historiografia enquanto realidade baseada em referências a um passado empírico não passa de um senso comum, pois na verdade a historiografia se refere a textos e reminiscências do passado, e não ao passado em si. Esse novo tipo de romance reinterpreta a história e a reescreve através da ficção, sem o objetivo contar a verdade, mas de questionar qual é essa verdade que se conta” [Araujo, p. 2535]

Analisar o texto de Saramago é um modo de se compreender as diferenças entre um texto literário, que se apresenta como um discurso histórico, e um texto historiográfico propriamente dito. Esse tipo de discussão pode ser complementado com o  exame das teses de Hayden White tais como as que tratam a respeito da ficcionalidade e do modo como as figuras de linguagem são utilizadas. E também podem ser complementada com o exame do resgate da narrativa dentro da produção historiográfica. 

Além disso, a discussão a respeito das diferenças entre um texto literário e um ficcional, o modo como um historiador pode utilizar elementos da retórica para a construção da narrativa história são de fundamental importância para a formação de um historiador. Ao mesmo tempo, esse tipo de assunto pode ser complementado com  discussões a respeito de como o historiador trabalha para preencher as lacunas das fontes históricas sem inventar nada enquanto um escritor trabalha com sua própria imaginação.

Até onde sabemos Saramago teve contato com a produção da terceira geração dos Annales, a chamada “Nouvelle Histoire”. Assim, seus romances podem servir de ponto de partida para se abordar o conceito de mentalidade, que está muito presente em seus romances. E, mesmo a ideia de uma história total.

Outro ponto que pode ser destacado é o fato de que Saramago abandona a história dos grandes homens e dos grandes feitos e coloca em primeiro plano a história do homem comum, daqueles são muitas vezes ignorados e não tem seus nomes preservados nos registros da História. Isso leva, naturalmente a uma tentativa de se preencher os silêncios da história. Vemos isso em “Memorial do Convento”, no qual o autor tem como foco narrar a vida dos operários, ficando a realeza e a nobreza em segundo plano.

Essa busca pela história do homem comum lava também ao resgate de acontecimentos que, normalmente, são ignorados pelos historiadores por não serem considerados historicamente importantes. Um exemplo disso será visto no romance “A Viagem do Elefante”, no qual o escritor resgata um acontecimento histórico que havia caído no esquecimento:

“Há dez anos, o português José Saramago recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Entre as dezenas de viagens que fez pelo mundo naquele ano, uma lhe ficou na memória. Em Salzburgo, na Áustria, após falar aos alunos da universidade local, Saramago foi convidado a jantar no restaurante do hotel Elefant. Trata-se de um local simples, fundado há 700 anos. Em 1551, era uma estalagem. O hotel de hoje não difere muito daquele do século XVI. Ali se hospedou o arquiduque austríaco Maximiliano II. O nobre e sua comitiva faziam uma viagem de Valladolid, na Espanha, rumo a Viena, levando um elefante. Daí o nome da hospedaria e a fileira de figuras que o dono mandou esculpir em madeira na sala de jantar. Saramago ficou intrigado com a obra, porque notou que na extrema esquerda figurava a Torre de Belém, monumento famoso de Portugal. Os anfitriões lhe explicaram que o elefante foi um presente dos reis dom João III e Catarina d’Áustria de Portugal ao nobre austríaco – e a viagem do animal havia começado em Lisboa. Surgiu assim, do acaso, o argumento de A Viagem do Elefante.” [Giron, p. 1]

Isso leva a outra questão importante para os historiadores dos Annales que é a do uso de novas fontes para a pesquisa histórica, em vez de se limitar aos documentos oficiais. Mesmo que não tenha sido intencional, foi a fileira de figuras esculpidas que foi a fonte a partir da qual este fato histórico foi resgatado. O que é algo importante a ser trabalhado com os alunos.

Conclusão
Por tudo o que foi dito, podemos ver alguns pontos de contato entre a obra de Saramago e a dos historiadores dos Annales. Esses são só alguns dos muitos temas que podem ser trabalhados por um professor de história. Além disso, esse tipo de trabalho por ser feito com muitos outros autores que utilizaram a literatura como forma de se repensar a História, como Gabriel García Márquez que, em “O general em seu labirinto”, faz uma releitura da figura de Bolívar, procurando desmistificá-lo. Nesse sentido, é importante se discutir a questão da utilização da literatura como fonte de trabalho para o historiador e para o professor de história. Além disso, é um meio de se levar o aluno a ter contato com a obra de um grande escritor.

Referências
Rodrigo Conçole Lage é graduado em História (UNIFSJ), especialista em História Militar (UNISUl) e professor de história da SEEDUC-RJ.

ARAUJO, Rodrigo Gomes de. Entre a literatura e a história: a metaficção de Valencio Xavier in http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais2011/trabalhos/pdf/Rodrigo%20Gomes%20de%20Araujo.pdf, 2011.
BARROS, José D’Assunção. Os Annales e a história-problema – considerações sobre a importância da noção de “história-problema”
para a identidade da Escola dos Annales. História: Debates e Tendências, v. 12, n. 2, 2012. Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rhdt/article/view/3073


REIS, C. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1988. 

WANDELLI, R. A invenção do real em Saramago. Anuário de Literatura, n. 6, 1988. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/view/5208.

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