DIÁLOGOS ENTRE SAÚDE E EDUCAÇÃO NO CURSO
DE JARDIM DE INFÂNCIA: FOLHEANDO AS PÁGINAS DO CADERNO DE UMA PROFESSORA (1965)
“Não
existe um objeto que, contemplado de diversos lugares, seja sempre o mesmo. Da
mesma forma, não existe um fenômeno, acontecimento ou assunto que, considerado
de perspectivas diferentes, não mostre aspectos antes não-visíveis ou visíveis,
mas não apreciados. Tudo depende, pois, da posição que adota aquele que olha.
(FRAGO, 2008, p. 15). ”
Ao
pensar as práticas de ensino na escola de uma determinada disciplina ou dos
conceitos que estão embutidos dentro de uma matéria a ser ensinada aos
estudantes e apreendidas pelos professores, logo nos vem à mente os planos de
aula, as legislações e os materiais escolares. No caso particular dessa
pesquisa os cadernos de estudo dos professores utilizados durante cursos de
formação inicial ou continuada. Os
cadernos enquanto testemunhos de práticas e experiências, nos possibilitam
olhar para outras dimensões dos processos educativos, nos fornecendo
informações da realidade material da escola e do que nela se faz:
“Los
cadernos son testimonio de practicas, ejercicios y experiências dirigidas y
compartidas, en las que tambien hay al menos um mínimo de produción y creación
própria surgida em el próprio proceso de elaboración de la tarea. (MAHAMUD;
BADANELLI, 2011, p. 224). ”
Dessa forma está pesquisa tem
por objetivo analisar por entre as páginas do caderno da professora normalista Maria
Coeli de Almeida Vasconcelos, as atividades e conceitos sobre higiene, saúde e
educação que eram ensinados dentro da disciplina de Higiene, no curso de
formação em Jardim de Infância na cidade de Brasília entre os anos de
1965-1966.
Afim
de compreender os diálogos entre saúde e educação, que permeavam a formação das
educadoras nesse curso, propusemos algumas questões que nortearam essa pesquisa
sendo estas: qual era o espaço que a higiene enquanto disciplina tinha no curso
dos professores de Jardim de Infância? E quais práticas relacionadas a saúde e
educação eram contempladas no curso?
Para
o desenvolvimento metodológico dessa pesquisa optou-se por realizar um estudo
de caso que como define Freitas e Jabbour (2011) é uma estratégia de pesquisa
que visa reunir informações aprofundadas de um fenômeno, envolvendo-se no
estudo de um ou poucos objetos. Que pode ter uma abordagem qualitativa ou
quantitativa. No caso dessa investigação, optamos por utilizar uma abordagem
qualitativa sobre a fonte. Como fonte primária utilizou-se o caderno de curso
de Jardim de Infância da professora Maria Coeli de Almeida Vasconcelos, em
contraposição a artigos, textos e decretos sobre jardins de infância e higiene
no Brasil.
A
centralidade desse estudo no caderno do curso de Jardim de Infância
justifica-se por haver poucos estudos que tomam o caderno usados pelos
educadores em cursos de formação de professores como fonte principal de
pesquisa. Revelando assim uma necessidade de se observar e investigar também as
apropriações dos conhecimentos para o exercício de sua profissão, que os
educadores fazem ao longo de sua formação inicial ou continuada.
Entendemos
que as apropriações feitas pelos sujeitos são diversas e distintas, conforme
corrobora Chartier (2001) essas apropriações são resultado do que os indivíduos
fazem com o que recebem, que também é uma forma de invenção, de criação e de
produção dos sujeitos a partir do contato com os textos e com os objetos
recebidos, revelando assim a imposição de um determinado sentido e também a
produção de novos.
Dando voz ao caderno
de uma professora
Kuhlmann
(2000) em seus estudos sobre a educação infantil no Brasil mostra que a
educação para as crianças de até três anos nas creches surgiu posteriormente as
instituições destinadas as crianças maiores. Até a década de 1970 as creches se
expandiram lentamente com atendimento de crianças de 4 a 6 anos, sendo que
grande parte dessas instituições eram ligadas a órgãos de saúde e assistência:
“As
instituições de educação infantil tanto eram propostas como meio agregador da
família para apaziguar os conflitos sociais, quanto eram vistas como meio de
educação para uma sociedade igualitária, como instrumento para a libertação da
mulher do jugo das obrigações domésticas, como superação dos limites da
estrutura familiar. (KUHLMANN, 2000, p. 11) ”
Essa
concepção assistencialista acerca da criança e da infância fica mais evidente a
partir da virada do século XIX para o XX, sendo as creches, escolas maternais e
jardins de infância um lugar para educar as crianças de mães pobres e
trabalhadoras. É importante destacar que apesar dessa relação assistencialista
que se constitui na formação das instituições de educação infantil, voltada as
demandas das mães pobres e trabalhadoras, também havia reivindicações por parte
de outros grupos sociais, pela educação das crianças pequenas:
“A
ampliação do trabalho feminino nos setores médios leva também a classe média a
procurar instituições educacionais para seus filhos. (KUHLMANN, 2000, p. 11) ”
Os
jardins de infância iniciam-se em 1840 na Alemanha com Froebel, numa
perspectiva pedagógica em que a criança era concebida analogamente como uma
planta em formação, que precisaria assim de cuidados periódicos para que
crescesse de maneira saudável. Nessa perspectiva os jardins de infância
passaram a constituir um modo específico de educar as crianças e a infância.
Para Nascimento (2016) os jardins de infância formalizaram uma forma de educar
com bases cientificas as crianças de 0 a 6 anos, tendo como pressupostos a
psicologia do desenvolvimento, da aprendizagem e do método intuitivo.
Os
estudos que se debruçam sobre os cadernos como fontes históricas para História
da Educação são relativamente recentes tendo adentrado os espaços de pesquisa
acadêmica principalmente pelos estudos atrelados ao currículo e a história das
instituições educativas, com a finalidade de examinar o vivido em sala de aula
ou na escola:
“Os
historiadores da educação assim como os especialistas em currículo e formação
de professores e os psicólogos, entre outros, preocupados em examinar o vivido
na sala de aula têm se voltado para os cadernos, que passam a ser considerados
importantes objetos ou fontes de pesquisa. (MIGNOT, 2008, p. 7) ”
Seguindo
na esteira do que nos mostrou Certeau (1982) é importante destacar o lugar que
o caderno ocupa na sala de aula e na vida dos professores. O caderno assim como
outros objetos escolares ocupa um determinado lugar, que por sua vez é distinto
do lugar ocupado pelos livros escolares. Mas que complementa e amplia os
estudos dos manuais, pois, como salientou Viñao Frago (2008) os cadernos
escolares são produtos da Cultura Escolar, de uma forma de organizar o trabalho
em sala de aula, de distintos ritmos, e da própria dimensão do ensino e
aprendizagem, sendo reflexo do contexto e etapa de ensino a quem se destinam.
Constituindo-se assim em uma fonte da cultura
material escolar, imbuídos de uma determinada história, segundo Ulpiano de
Meneses (1998) os objetos materiais possuem uma trajetória e uma biografia,
corrobora nesse sentido Rosa Fátima de Souza (2007) ao salientar que os
artefatos materiais vinculam as concepções pedagógicas, práticas e saberes do
universo escolar.
Neste
estudo buscamos analisar como a disciplina de Higiene aparece no caderno de uma
professora do curso de Jardim de infância entre os anos de 1965-1966 na cidade
de Brasília. Com intento de perceber as apropriações feita pela mesma, a partir
de suas anotações compreendendo que as disciplinas escolares são:
“As
disciplinas escolares, compreendidas como um produto cultural, responsáveis
pela transmissão de conteúdos e saberes escolares, além de seu rol
programático, são também constituídas pelo aparato didático-pedagógico que
orienta seu ensino. Concebida como uma construção escolar, uma disciplina
escolar, pelos códigos próprios criados para seu funcionamento, ajuda a moldar
a cultura escolar. Nessa perspectiva, as práticas de ensino, sob o olhar da história
cultural, são práticas culturais, um espaço de excelência repleto de códigos
pertinentes para serem decifrados em uma história das disciplinas escolares.
(PINTO, 2014, p. 7). ”
O
material analisado encontra-se disponível para consulta no Repositório Institucional
da UFSC, junto com mais alguns cadernos de planejamento dessa mesma professora
para aulas de matemática e alfabetização. Possui 74 páginas digitalizadas, do
tipo espiral com dimensão 22, 5 cm X 15. Está organizado conforme as disciplinas do
curso distribuídas e anotadas pela professora da seguinte maneira: 1.
Recreação; 2. Psicologia; 3. Biologia; 4. Artes aplicadas; 5. Higiene; 6.
Música; 7. Audiovisual. Segundo as anotações encontradas no próprio caderno as
aulas aconteciam as 2º, 3º, 5º e 6º feiras das 8h às 11h. Os temas a serem
tratados no curso estavam organizados da seguinte forma pela professora:
I-
“Introdução a educação pré-primária; A. A criança
(60h);
B. A escola (40h).
II-
Educação da criança pré-primária; A. arte na
educação; B. recreação; C. desenvolvimento da capacidade de expressão e
socialização; D. Desenvolvimento da capacidade de exploração; E. unidade de
trabalho como processo integrador das atividades de jardim de infância; F.
educação para a saúde; G. o papel do jardim de infância em relação a
aprendizagem da linguagem e matemática; H. Direção do trabalho. (VASCONCELOS, 1965, p. 4-5). ”
Percebe-se
por meio dos nomes das disciplinas que havia no curso de Jardim de Infância uma
preocupação para que as cursistas compreendessem quem eram essas crianças e
dominassem ao mesmo tempo as noções de desenvolvimento da criança e de higiene
segundo as orientações feitas pelos médicos, psicólogos e professores.
Observando as legislações educacionais podemos observar que o ensino primário
já tinha como uma de suas frentes promover a saúde a partir da instrução das
crianças e adolescentes. Segundo a lei
orgânica do ensino primário de 1946 a finalidade dessa etapa de ensino era:
III-
“Art. 1º O ensino primário tem as seguintes
finalidades:
IV-
a) proporcionar a iniciação cultural que a todos
conduza ao conhecimento da vida nacional, e ao exercício das virtudes morais e
cívicas que a mantenham e a engrandeçam, dentro de elevado espírito de
Naturalidade humana; b) oferecer de modo especial, às crianças de sete a doze
anos, as condições de equilibrada formação e desenvolvimento da personalidade;
c) elevar o nível dos conhecimentos úteis à vida na família, à defesa da saúde
e à iniciação no trabalho. ”
No mesmo texto é possível perceber que as Escolas
Normais deveriam manter escolas anexas para práticas de ensino, fazendo menção
aos jardins de infância que eram anexos aos institutos de educação, como um
lugar de atuação e complementação de práticas para formação das jardineiras. Com
a lei nº 4.024 de 20 de dezembro de 1961 a educação para as crianças menores de
sete anos passa a ser reconhecida como parte do processo de ensino, sendo
chamada de etapa pré-primária:
“Art. 23. A educação pré-primária destina-se
aos menores até sete anos, e será ministrada em escolas maternais ou
jardins-de-infância. Art. 24. As empresas que tenham a seu serviço
mães de menores de sete anos serão estimuladas a organizar e manter, por
iniciativa própria ou em cooperação com os poderes públicos, instituições de
educação pré-primária. “
Durante as décadas de
1960-1985 o Brasil encontrava-se em um regime político civil-militar em que a
educação ganharia um viés mais tecnicista, cujo uma das finalidades era
preparar os cidadãos para o mercado de trabalho e o exercício de uma profissão,
com um conhecimento mais prático, utilitário e instrumentário. As concepções
psicológicas que vem essa criança como um ser em desenvolvimento passam a
influenciar publicações relacionadas a infância e as crianças, como exemplo a
seguir de um programa de estudos para crianças de 5 e 6 anos, voltado para a
orientação dos educadores:
“Embora,
as crianças, tenhas de um modo geral, características semelhantes, num
determinado período ou idade, elas são completamente diferentes entre si. Não
há duas crianças iguais. Elas provêm de famílias diferentes, de ambientes
diferentes, e cada uma revela tipos diversos de experiências. Qualquer grupo ou
classe de Jardim inclui crianças felizes e tristes, tímidas, agressivas,
confiantes, amáveis, desconfiadas, crianças com interesses, habilidades e
necessidades diferentes. (SÁBER; FÉRES, 1963, p. 41). ”
A educação pré-primária seria dessa forma uma
educação voltada para as crianças de 0-6 anos de idade, um período anterior à
escola primária. Nas anotações da professora Maria Coeli observa-se que a
concepção de quem é essa criança pequena, está influenciada principalmente
pelas correntes psicológicas que concebem a criança como um ser em
desenvolvimento, e de outros pensadores importantes para história da Pedagogia
(Rousseau, Montessori, Galton, Piaget e Clarapède).
Diálogos entre
educação e saúde no curso de Jardim de Infância
Com a
proclamação da República no Brasil o discurso modernizador se expandiu dando
ênfase a necessidade de se proteger crianças e mulheres para que se pudesse
construir a nação moderna. Estabeleceu-se uma nova relação entre o Estado e a
Medicina como destaca Marques (2000), essa relação serviu para construir e
reforçar o binômio mãe-filho em que o movimento higienista teve grande atuação
na modulação dos comportamentos em prol da saúde da criança:
“A
linguagem médica endureceria, passando do conselho à ordem. Já não se permitia
que a mãe escolhesse entre métodos diversos e não mais se tomava a natureza
como guia, ao contrário, procurava-se contrariá-la. O pensamento médico
tornava-se radical (...) o médico era o único guia e, como tal, não
aconselhava, dava ordens: o número, a duração e o intervalo das mamadas
deveriam ser rigidamente estabelecidos em um período de vinte e quatro horas.
(MARQUES, 2000, p. 43. ”
A
infância durante muito tempo foi uma das destinatárias e sujeito constituidora
dos discursos higiênicos. Já que as crianças eram vistas como a geração futura
e a esperança do país. Segundo Pykosz e Oliveira (2009) o movimento higienista pode
ser compreendido como um projeto social ambicioso que buscava estabelecer novos
padrões de saúde, usando a educação como uma das principais ferramentas de
propagação desses saberes. Esse projeto educativo de higienização social expressou-se
também nas escolas mediante a criação de disciplinas escolares como: Puericultura,
Paidologia, Trabalhos Manuais e Prendas Domésticas. A Higiene nesse
contexto passa a compor a grade dos conteúdos dos currículos escolares, da
formação dos professores e programas de ensino.
Essas prescrições e orientações médicas dentro na
disciplina de Higiene ficam visíveis nas anotações do caderno da professora, com
a indicação por exemplo, de uma pequena farmácia que as educadoras deveriam ter
a sua disposição em caso de acidentes com as crianças:
“Algodão Hidrófito 1 pacote médio; rolos de
ataduras de gaze diversos tamanhos; gazes esterilizadas para curativos; álcool
a 90º; um vidro de éter sulfúrico; 1 vidro de água oxigenada 10 volumes; 1
vidro de anticéptico (mertiolato); bicarbonato de sódio... (VASCONCELOS, 1965,
p. 56). ”
Há ainda uma série de anotações que aparecem no
caderno sobre remédios e outros produtos que compunham essa pequena farmácia,
bem como orientações sobre as injeções que as crianças deveriam tomar em cada
período da vida.
Além da indicação dessa
farmácia ainda havia uma listagem sobre princípios da higiene do corpo, do
vestuário e da alimentação, sendo essa última mais trabalhada, uma vez que
várias doenças poderiam ser adquiridas pela ingestão de alimentos estragados ou
mau higienizados.
Havia
também uma pequena parte de orientações relacionadas aos procedimentos a serem
tomados em caso de envenenamento ou mordida de cobra e cachorros, como nesse
outro exemplo, em que a uma descrição detalhada dos tipos de cobras e suas
respectivas picadas, seguida de orientações sobre o que fazer em caso de
acidentes com animais venenosos:
“(...)
cuidado; comprima para absorver a picada se é venenosa vai apresentar dois
furinhos simétricos e uma série de furinhos menores. (...) Da cascavel é o mais
grave em 2 horas a pessoa morre, a dor é pequena, mas a perna fica fraca, não
consegue se manter em pé e sofre de perturbações visuais, paralisia do músculo
do pescoço e vômitos em seguida a pessoa morre. (VASCONCELOS, 1965, p. 68) ”
Por meio
desses exemplos retirados das anotações de estudo da professora, é possível
observar que existia uma gama variada de conhecimentos médicos, de puericultura
e de doenças da infância que as professoras/jardineiras tinham que dominar. Assim
as noções de saúde tinham um papel importante na formação dessas educadoras, esses
conhecimentos relacionavam-se as várias áreas da vida dessa criança, tanto emocional,
familiar quanto para o
desenvolvimento saudável das crianças.
Considerações
Finais
Os estudos dos cadernos como fonte para História da
Educação e da Saúde se mostra um campo vasto de possibilidades. Que nos revela
os processos de apropriação realizados sob a ótica do indivíduo que recebe esse
conhecimento. É necessário pois não cair na armadilha de que os cadernos por si
só dão conta do processo educativo, é necessário o cotejamento com outras
fontes para que se torne possível a escrita da História. Além disso, os
cadernos constituem fontes recentes para o estudo da Cultura Escolar, sobretudo
os estudos com cadernos de formação de professores em nível de graduação ou
formação continuada, que necessitam ser mais explorados e investigados.
Referências
Amanda
Pereira de Lima é licenciada em Pedagogia pela UFPR (2017), atualmente é
mestranda da linha de História e Historiografia da Educação desenvolvendo a
pesquisa intitulada “ Formando a gerente do lar: Economia Doméstica na Revista
Feminina de São Paulo (1914-1918) ” sob orientação da professora Draª Liane
Maria Bertucci no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Paraná. É integrante do núcleo de Estudos e Pesquisas em História da
Formação e das práticas Educativas (NUHFOPE) da UFPR. Tem experiência em
docência do Ensino Fundamental I, Tutoria EAD e coordenação pedagógica.
Agradeço
a professora Draª Gizele de Souza pelas discussões e debates na disciplina “
História, Escolarização e Cultura Escolar”, que inspiraram a criação desse
estudo e a todos envolvidos com a criação do simpósio pela oportunidade de
compartilhar conhecimentos para contribuir no campo de pesquisa acadêmico da
educação.
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