Luiz Henrique Silva Moreira


DA CÓLERA DA PÓLIS À ATARAXÍA DA ALMA:
INTERSECÇÕES ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA E A FILOSOFIA ANTIGA



Introdução
O presente texto apresenta uma proposta de leitura das produções educacionais da antiguidade helenística (IV a.C. – II d.C.) sob a ótica da Filosofia Antiga. Para que se torne possível repensar um Ensino de História Antiga que fuja do estereótipo dos mitos e magias, de modo que não se nega tais instrumentos como artificies importantes para instigar interesse no aluno sobre o tema, entretanto propõe-se que esta não seja o único objetivo da História Antiga no currículo escolar. Desse modo a proposta aqui apresentada visa sair da tal premissa para que seja possível traçar ligações diretas com o cotidiano do educando ensinando-o a pensar filosoficamente problemas históricos e o mundo a sua volta.

Visando não romper bruscamente as delimitações de cada área do saber, História Antiga e Filosofia Antiga, optou-se por apresentar uma narrativa história acerca da influência filosófica na sociedade antiga durante a transição do período clássico ao helenístico. Ao final apresentou-se excertos de fontes que apresentam conhecimentos científicos cultivados à época helenística que demonstram uma possibilidade de se transformar textos filosóficos antigos em fontes para uso em sala de aula.      

A cólera de Aquiles
“Canta-me, ó deusa, a cólera funesta de Aquiles” (Homero, Ilíada,I,1), e assim se inicia a Ilíada, obra que ao lado da Odisséia serviu de material didático nas instituições de ensino, e dedicadas ao saber, durante todo o mundo antigo. A permanência de tal obra reside no fato de ela apresentar, imbricando ética e estética poética, o espírito necessário à época através da junção de mito e poesia. “O Pathos do sublime destino heróico do homem lutador é o sopro espiritual da Ilíada. O ethos da cultura e da moral aristocrática encontra na Odisséia o poema de sua vida” (JAEGER, 2001, p. 66), o Pathos heróico, ou o sentimento da experiência da experimentação da glória, que educa a nobreza aristocrática grega se manifesta através da Aristéia, momentos dos combates individuais onde se manifesta o individual e ético, e no qual os grandes guerreiros alcançam sua glória, mesmo que esta venha com a morte.

Torna-se possível perceber que é através dos poemas homéricos que se manifestam ideais que ligam a individualidade à coletividade, através de expressões como “lutar pela pátria é um bom augúrio”, frases que aparecem tanto na boca dos gregos, quanto de troianos, para demonstrar qual era a qualidade humana que deveria ser perseguida (JAEGER, 2001, p. 72). Tal Aristéia gera a Arete, que não tem tradução direta para o português, mas fazendo alusão ao seu correlativo em latim (Virtus), pode-se compreender como virtude, ou excelência. A Arete se baseia na busca pela glória através de uma ética da honra, essa era a ética contida em Homero, na qual o herói vive e morre por encarnar em sua conduta um ideal que manifesta a qualidade de sua existência, que a palavra Arete simboliza (MARROU, 1975, p. 29).

Como bem observou Sloterdijk (2012), em seu ensaio político-psicológico, a opção pelo canto da cólera (Mênis) de Aquiles mostra uma faceta dos gregos que baseavam sua virtude (Arete) na ira, que era primordial para o espirito do mundo grego antigo, mundo esse no qual a violência era tomada como coisa cotidiana, fator esse que explica como até mesmo filósofos como Sócrates tomavam a escravidão por normal e a utilização da força como indispensável (SOUSA, 1988, p. 8).

Foi através da Mênis e da Arete que o espírito ático grego atingiu seu ápice após os feitos de Atenas nas guerras pérsicas, “A criação da cultura Ática popular do séc. V não provém da constituição nem do direito eleitoral, mas da vitória” (JAEGER, 2001, p. 287), de modo que através de tal interpretação podemos compreender como a questão da “vitória” se torna um componente formador essencial da cidadania grega.

Ou seja, os séculos VI-IV a.C. marcam uma transformação no conceito de Arete, que culminará em um novo ideal de educação. Ao passo que na Grécia Arcaica (VII-VI a.C.) a Aretê se mostrava como uma virtude aristocrática que legitimava pequena parcela da população, perante a grande massa, através da manutenção de uma memória social de uma nobreza que alegava compartilhar laços sanguíneos com heróis, deuses e semideuses, durante o século VI a.C. tal legitimidade passa a ser contestada. Pode se supor como motivos de tal alteração, o surgimento dos primeiros pensadores gregos e expressões filosóficas que criticaram abertamente as genealogias cosmogônicas nas quais tais virtudes eram pautadas, ou também pelo fato do sentimento de vitória e pertencimento dos feitos atenienses se tornarem popular, ou ambos.

Tomando como plausível a hipótese da popularização do sentimento de vitória, seria possível tomar os Jogos Olímpicos como uma alternativa de manutenção da Arete sem a guerra, evidenciando a popularização do espírito de Arete. Pois os jogos funcionavam como um ritual de cidadania para os gregos, se tratando de outra forma do Grego integrante da Pólis (Polites) manifestar sua excelência pera o Outro, estrangeiro (Xenos), reforçando não só os elos para com a comunidade, que se identifica com a Arete do competidor que encarna o herói-guerreiro em busca de glória, mas também reafirma o sentido de ser grego como sinônimo de civilizado perante os bárbaros (FIALHO, 2011).

Visando especular a hipótese do surgimento de corrente filosóficas que contrapõem direta e indiretamente a Arete, se faz necessária uma análise da filosofia sofística e a corrente de pensamento “humanista” implantada pelos mesmos, e aprimorada por Platão e Aristóteles. Por mais que os sofistas, e outros filósofos da Grécia Clássica, ainda estejam ligados à velha tradição aristocrática, estes se tornam responsáveis por renovar a preeminência moral e espiritual da Arete, em busca de ensinar a Techné política. Tal ensino se baseava na possibilidade de ensinar o grau mais alto da lei e justiça para os futuros chefes da Pólis, de modo que se encontra nessa atitude uma tentativa de quebrar com os privilégios através dos laços sanguíneos, ao passo que ensinavam a quem podia pagar, entretanto, ensinando que este poderia almejar o posto de governante da Pólis.

Os sofistas iniciam uma cisão entre religião e cultura, mas acima de tudo iniciam uma educação ética e política voltada para o humanismo, onde não se separa filosofia da vida como se fazia antes destes.  Esta educação ética e política é um traço essencial da verdadeira Paidéia, o novo ideal de educação que estava surgindo.

Entretanto, o fato é que seja qual for o motivo que leva a uma alteração da Aretê entre os séculos VI-IV a.C., esta se dá de forma tardia ou demasiadamente demorada. De modo que essa virtude, com base na ira homérica, que se alimentava da busca constante por glória levará ao fim as Póleis em seu modelo clássico, antes mesmo que a gestação natural da Paidéia ocorra.

Essa assertiva se baseia nos incidentes que levaram à Guerra do Peloponeso, tanto a administração de Atenas frente à Liga de Delos, quanto os incidentes de Córcira e Potidéia, onde os atenienses fizeram oposição aos coríntios, principais aliados de Esparta, ocasionando a guerra e uma crise que culmina com a derrota frente à Macedônia por volta de 338 a. C. (SOUSA, 1988, p. 64), levando toda Hélade ao domínio macedônico.

A Paidéia helenística como forma de Cultura
Após a morte de Alexandre da Macedônia, se inicia o que se convencionou a chamar por período helenístico, ou alexandrino, que, levando em conta os estudos recentes acerca da Antiguidade Tardia, pode-se alocar dentre o período de 323 a.C. e 180 d.C. Para além do período onde a cultura grega se espalha para todo entorno mediterrâneo, ocidental e oriental, se trata do mundo antigo da Paidéia, período que separa a antiguidade da Pólis da antiguidade da Teópolis, “a civilização cristã do Baixo Império constantiniano, da cristandade medieval, ocidental ou bizantina” (MARROU, 1975, p. 160).

Se a gestação da Paidéia no período clássico foi lenta, a partir do período helenístico a situação se altera, e a palavra que antes significava criação ou educação da criança, assume então a ideia de cultura.

“(...) a mesma palavra, em grego helenístico, serve para designar o resultado desse esforço educativo, continuado para além dos anos escolares durante toda a vida a fim de realizar mais perfeitamente o ideal de humano.” (MARROU, 1975, p. 158-159)

A partir de então, Paidéia (ou Paideusis) passa a significar

“a cultura, entendida não no sentido ativo, preparatório, de educação, mas no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem.” (Idem)

E tal fato explica porque, segundo Aulo Gélio (Noites Áticas, XIII, 16, I), quando Varrão e Cícero tiveram de traduzir Paidéia, o farão através do termo em latim Humanitas.

Ao passo que se avança em relação ao tratamento que o período helenístico deu à educação, se torna possível perceber porque o mesmo se tornou a civilização da Paidéia, e erigiu um novo ideal de “cultura”. Enquanto durante o período clássico só se encontrava a educação como objeto de uma regulamentação do Estado nas Póleis aristocráticas, como Esparta e Creta, e a maioria das Póleis seguia o molde ateniense no qual a educação sempre foi assunto regulado por instituições privadas, fator esse que se altera durante o período alexandrino, quando a exceção vira regra, tornando toda a educação do entorno mediterrânico um assunto das instituições públicas das cidades:

“Ao contrário, para os helenísticos, a legislação escolar tornou-se coisa normal, um dos tributos necessários do Estado civilizado: donde seu espanto quando encontram em Roma republicana um estádio de evolução arcaico, no qual a educação é ainda negligenciada pelo Estado” (MARROU, 1975, p. 166).

Não se torna incongruente tomar a educação como assunto estatal se esta mesma era regulamentada pelas cidades, visto que o reino macedônico pouco alterou na estrutura de funcionamento a nível “municipal”, operando e se manifestando através de estruturas pré-existentes, ao contrário do Baixo Império Romano que as fazias sobre uma premissa totalitária.  Mas tal fato também explica, como apontou Maria Helena da Rocha Pereira, o motivo de mesmo uma educação que passa a ser legislada pelo Estado, que garante sua aplicação, ainda detinha grandes investimentos do mecenato (PEREIRA, 1993, p. 525).

É durante o período que surge o que se convencionou chamar de estudos secundários, expandindo o tempo de ensino do jovem grego que agora passa a ocorrer dos sete aos dezenove/vinte anos. Havendo assim uma divisão dos estudos secundários em duas partes, em uma parte literária (gramática, retórica, dialética) e uma parte científica (aritmética, geometria, astronomia, música), divisão essa que será reaproveitada durante o medievo, no Império de Carlos Magno, sob os nomes de Trivium e Quadrivium.

A criação do Museu (Templo das Musas) de Alexandria por parte de Ptolomeu I, e ampliação deste por parte de seu filho Ptolomeu II, com “um observatório, salas para dissecação ou laboratórios, jardim botânico, jardim zoológico” (PEREIRA, 1993, p. 534), fomentaram os estudos científicos da época. Estrabão fornece uma descrição do mesmo em uma de suas obras:

“Também faz parte dos palácios reais o Museu, dotado de um passeio coberto (Perípatos), de uma exedra e de uma grande casa, onde fica a sala de refeições dos eruditos (Filólogos) que pertencem ao Museu. Esta assembleia possui bens comuns e tem um sacerdote que está à frente do Museu, o qual outrora era designado pelos reis, e na actualidade o é pelo imperador.” (Geografia, XVII, 1.8) (Tradução PEREIRA, 2003, p.500)

Através desses avanços em estruturas para os estudos e pesquisas, se tem um grande salto no conhecimento científico da época em várias áreas. Em relação à Matemática e Física, pode-se citar Euclides de Alexandria com seus treze livros de Elementos, que inaugura a geometria.

 Na área da Astronomia, já no século III a.C., Aristarco de Samos estudou o Sol e a Lua, chegando à constatar suas distancias e que o satélite terrestre não detém luz própria:

“A Lua recebe a sua luz do Sol.
A Lua subentende 1/50 de um signo do Zodíaco.
A distância do Sol à Terra é maior dezoito vezes, mas menor do que vinte vezes, a distância da Lua à Terra.” (Tamanhos e Distâncias do Sol e da Lua, I, 6,7) (tradução PEREIRA, 2003, p. 487)

Aristarco também supôs, ao que parece pela primeira vez na história, uma teoria heliocêntrica do universo, teoria essa comentada por Arquimedes de Siracusa:

“Tu sabes por que razão a maior parte dos astrônomos chama o mundo (Kósmos) à esfera cujo centro é o centro da Terra e cujo raio é a linha recta compreendida entre o centro do Sol e o da Terra. Esta doutrina é a que aprendeste nos tratados de astronomia. Porém, Aristarco de Samos publicou uma exposição, da qual se deduz que o mundo é muito maior do que se diz. Supõe ele que os astros fixos e o Sol Permanecem imóveis, ao passo que a Terra gira em círculo à volta do Sol, o qual se encontra no centro do percurso, e que a esfera dos astros fixos, que se situa à volta do mesmo centro que o Sol, tem dimensões tais que a proporção do círculo, em do qual ele supõe que a Terra gira, para a distância das estrelas fixas, é semelhante à proporção entre o centro da esfera e a sua superfície. É fácil demonstrar como isto é impossível. Porquanto, uma vez que o centro da esfera não tem grandeza, não pode admitir-se que tenha qualquer proporção com a superfície da esfera.” (O Arenário, 1) (tradução PEREIRA, 2003, p. 493)

Podem-se interpretar os estudos de eruditos, que em sua maioria eram filósofos, como a continuação de uma tradição de estudos em várias áreas do saber iniciada pela Academia de Platão e pelo Liceu de Aristóteles. Fator esse que fornece o indicativo da necessidade de pensar as mudanças ocasionadas na sociedade pelo pensamento crítico-filosófico durante a Antiguidade, e quem sabe os demais períodos da história humana.

Conclusão: Um novo modo de ser e estar no mundo
Dessa maneira, se pode evidenciar que quando se pensa a História da Educação Antiga, sob o espectro da Filosofia Antiga, as possibilidades de fontes de ensino sobre o mundo antigo se expandem, aumentando consequentemente as possibilidades de interpretação do Período. Acessar a produção de conhecimento, crítica às estruturas sociais e morais, feitas pelos filósofos antigos permite sair do estigma do estereótipo de uma sociedade tomada por uma mentalidade infestada de mitologia e mágica, e traçar aas rupturas e continuidade que separam a antiguidade e a contemporaneidade.

A tentativa de enquadrar a História Antiga sob os conceitos de rupturas e continuidades se apoia na ideia de que o conceito de decadência da cultura grega, durante o período alexandrino, há alguns anos já não se sustenta perante os estudos acerca do helenismo. O que se pode constatar em relação ao período, tendo por base a filosofia antiga é uma mudança no conceito de mundo. Pode-se perceber tal mudança porque trata-se aqui de uma filosofia como um modo de ser e estar no mundo, tendo de abordar as problemáticas do mundo no qual o ser se encontra. Compreende-se assim como a filosofia socrática-platônica da época clássica se relacionava com o mundo clássico, pois essa se deparou com a necessidade de refletir sobre a problemática da Pólis ateniense, pois esse era o mundo no qual ambos estavam inseridos.

Entretanto, com a ascensão da monarquia macedônica a visão de mundo dos gregos se altera. A Hélade que antes se distinguia dos demais através de sua cultura, se torna parte de uma única, e mista, Paidéia mediterrânea. Nota-se então uma realocação do filósofo, que vai de cidadão da Pólis à cidadão do mundo (Kosmo-polites), alterando não só o conceito de mundo da antiguidade ocidental, como o objeto especulativo da filosofia antiga. Filosofia essa que agora tem que se deparar com o problema do ser perante o mundo, levando os filósofos à busca de uma vida sem tormentos (Ataraxía).

Abordar tais problemáticas permite, durante as aulas de História Antiga, apresentar aos alunos um ensino que corrobore para a reflexão crítica do mundo a sua volta. Para além de mostrar como a educação condiciona a visão de mundo do ser, têm-se a possibilidade de ampliar a consciência histórica dos educandos, ensinando-os à pensar filosoficamente problemas históricos, para que estes também sejam capazes de buscas sua Ataraxía.

REFERÊNCIAS
Luiz Henrique Silva Moreira é licenciado em História pela Universidade Estadual do Paraná. Atualmente é aluno do Programa de Pós-Graduação, de nível mestrado, da Universidade Federal do Paraná pela linha de pesquisa Cultura e Poder.

FIALHO, Maria do Céu. Rituais de Cidadania na Grécia Antiga. In: Cidadania e Paideia na Grécia Antiga. LEÃO, Delfim Ferreira; FERREIRA, José Ribeiro; FIALHO, Maria do Céu (org.). São Paulo: Annablume Clássica; Coimbra: CECH, 2011.

JAEGER, Werner. PAIDÉIA: A Formação do Homem Grego. ed. 4. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

MARROU, Henri-Irénéé. História da Educação na Antiguidade. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda, 1975.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. ESTUDOS DE HISTÓRIA DA CULTURA CLÁSSICA: Cultura Grega. v.1. ed. 7. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Org.) (trad.). HÉLADE: Antologia da Cultura Grega. ed. 9. Porto: Edições ASA, 2003.

SLOTERDICK, Peter. Ira e Tempo: ensaio político-psicológico. São Paulo: Estação Liberdade, 2012.

SOUSA, Marcos Alvito Pereira de. A GUERRA NA GRÉCIA ANTIGA. São Paulo: Editora Ática, 1988.

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