A
PRESENÇA-AUSENTE DA MIGRAÇÃO NORDESTINA NO MUSEU DA IMIGRAÇÃO
O presente ensaio tem por objetivos inserir o
leitor na História do Museu da Imigração (MI), antiga Hospedaria do Brás,
conferindo maior enfoque à migração nordestina que, embora tenha sido
significativa, não recebe a devida atenção, seja por meio da expografia
existente na exposição permanente, seja por intermédio da proposta curatorial.
Com o intuito de tornar este estudo possível, serão utilizadas reproduções de
imagens, pertencentes ao espaço expositivo, como também, as que pertencem ao conjunto
iconográfico do livro: ‘Memorial do Imigrante: a imigração no Estado de São
Paulo’, escrito por Odair da Cruz Paiva e Soraya Moura, assim como textos
elaborados por estes autores por abordarem a migração interna. No presente
estudo é estabelecido conexão com as reflexões dos historiadores: Pierre Nora e
Paulo Fontes, enquanto este aborda a migração nordestina para São Miguel
Paulista (para atuar no ramo industrial), aquele trabalha com os lugares da
memória, sendo que, o espaço museológico também cumpre essa função, por meio de
suas exposições e atividades educativas. A maior parte das imagens selecionadas
ilustra a migração interna, lembrando que ela ocorreu em três momentos
distintos, sendo o primeiro período entre fins do século XIX e início do XX
(acompanhando o fluxo imigratório internacional), já o segundo período ocorreu
entre as décadas de 1930-40, por conta do estímulo, realizado pelo governo de
Getúlio Vargas (promovendo um discurso em prol do trabalhador nacional),
enquanto que, entre as décadas de 1950-70 houve grande estímulo à vinda de
trabalhadores nordestinos para atuarem no crescente campo industrial da cidade
de São Paulo, segundo nos informam Odair Paiva e Soraya Moura:
“Entretanto, o grande boom da presença
de migrantes nas dependências da Hospedaria se deu entre as décadas de 1930 e
1950. Nesse período, passaram por aquela instituição aproximadamente 1 milhão
de trabalhadores oriundos notadamente do Nordeste. A Hospedaria dos Imigrantes
também foi a Hospedaria dos Migrantes. As razões para este enorme e intenso fluxo
migratório interno podem ser encontradas na política de nacionalização da
mão de obra instituída pelo governo Getúlio Vargas e que, ao menos no plano do
discurso, visava à proteção do trabalhador nacional.”
[MOURA; PAIVA, 2008, p. 115]
Esse grande fluxo migratório pode ser
ilustrado por meio da fig. 01 (podemos visualizar trabalhadores
nacionais e familiares no salão de matrícula), compondo um grande contingente
de anônimos em busca de melhores condições de vida. Outro ponto a ser
considerado é o momento em que foi elaborada essa imagem (década de 1940),
época em que o mundo sofreu com a Segunda Guerra Mundial e trata-se de um
período em que o Brasil promoveu a substituição de importações, aumentando seu parque
industrial e suas exportações para os países da Europa, gerando, por
consequência, mais empregos na região Sudeste.
Fig. 01 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 100)
Embora seja incontestável a importância da
influência nordestina na cultura paulista e paulistana, as manifestações
culturais destes migrantes não serão aqui abordadas, dado o escopo deste ensaio
(podendo ser desenvolvido num estudo posterior), que visa trabalhar a ausência
de um destaque maior aos contingentes de migrantes nordestinos no espaço
expositivo do MI, tendo em vista a lógica do trabalho, seja no meio rural, seja
na área urbana.
A presença nordestina pouco mencionada no espaço expositivo
O Museu da Imigração foi inaugurado em 2014, como
uma instituição pertencente ao governo do Estado de São Paulo, sendo
subordinado à Secretaria de Estado da Cultura. Antigamente, naquele espaço
funcionava a Hospedaria do Brás, construída no final do século XIX e funcionou
com esse fim até a década de 1970 (Inicialmente, subordinada à Secretaria
Estadual de Agricultura), sem nos esquecermos de que, até a década de 2010, aquele
espaço funcionou como o Memorial do Imigrante.
Embora seja amplamente divulgado no MI que, entre
as últimas décadas do século XIX e início do XX houve um intenso fluxo
imigratório, sendo que, os maiores contingentes populacionais vinham da Itália,
Espanha e Portugal, respectivamente, quase não é mencionado que, nesta mesma
época, houve um período de migração interna para o estado de São Paulo. Apesar
da Crise Econômica Internacional de 1929 ter afetado a elite cafeeira existente
no Brasil, a agricultura de exportação não deixou de ocorrer, necessitando de
mais trabalhadores para as lavouras:
“A presença de trabalhadores
nacionais na Hospedaria de Imigrantes foi registrada no ano de sua inauguração,
em 1888. Embora construída para alojar e encaminhar imigrantes para a lavoura,
grupos de migrantes provenientes basicamente da região Nordeste também
estiveram ali alojados desde muito cedo. Durante o final do século XIX e também
nas duas primeiras décadas do século XX, os nacionais eram, entretanto, um
grupo bastante minoritário entre os alojados na Hospedaria.”
[MOURA; PAIVA, 2008, p. 112]
A migração interna também foi motivada (na primeira
metade do século passado) por conta das secas no Nordeste e pela crise que
assolou os donos dos engenhos de cana de açúcar (em Pernambuco) e pela baixa
produtividade nas regiões algodoeiras, também no Nordeste. Além disso, o
governo Paulista promoveu uma campanha de subsídios, assim como ocorreu com os imigrantes
que decidissem vir ao Brasil. Para atender esse fluxo migratório, foi criada,
em 1939, a Inspetoria de Trabalhadores Migrantes (ITM), para subsidiar as
famílias nacionais, lembrando que, além de virem pelo Norte, saindo de Minas
Gerais (de Pirapora e Montes Claros), por meio do uso do transporte ferroviário
(reforçando a argumentação de Moura e Paiva), também poderiam vir pelo litoral
(por intermédio da navegação de cabotagem, a fim de utilizarem a Estrada de
Ferro Santos-Jundiaí).
Nos dias atuais, o trecho que levava à antiga
Hospedaria, utilizando a via férrea Central do Brasil (partindo de Minas
Gerais) se encontra desativado. A seguir, há a reprodução de uma imagem que
representa um desembarque de migrantes, que contribuíram para o desenvolvimento
de São Paulo:
Fig. 02 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 110-111)
Já na década de 1950, o vertiginoso crescimento da
cidade de São Paulo, associado à instalação de um imenso parque industrial,
contribuiu para que houvesse, mais uma vez, a atratividade de mão de obra
migrante. O historiador Paulo Fontes ilustra em seus estudos o quanto a cidade
paulistana se desenvolveu:
“De fato, a zona metropolitana de São
Paulo nos anos 1950 foi o palco de um acelerado e diversificado processo de
industrialização e urbanização. A região foi a principal responsável pela
elevada taxa de crescimento industrial do país. Entre 1945 e 1960 o setor
secundário no Brasil cresceu em média 9,5% ao ano, constituindo um dos
mais acentuados processos de industrialização no período em todo o mundo. Em
1959, quase 50% de todo o emprego fabril do país estava concentrado no estado
de São Paulo. Adicionalmente, o crescimento industrial paulista estimulou uma
grande expansão do setor de serviços na região, ampliando ainda mais a oferta de
empregos e possíveis oportunidades.”
[FONTES, 2008, p. 47]
Graças a esse intenso crescimento, São Paulo foi um
grande ponto de atração de trabalhadores nacionais, que estavam à procura de
melhores oportunidades de trabalho, assim como por melhores condições de saúde
e educação:
“Por fim, a associação da cidade com
toda uma série de benefícios urbanos, particularmente nas áreas de educação e
saúde também era salientada pelos migrantes. "Na Bahia", lembrava uma
mãe de família também entrevistada no início da década de 1950, "não se
pode dar boa educação aos filhos. A escola fica longe. Aqui [em São Paulo] há
mais facilidades". As estatísticas comprovavam a experiência dos
trabalhadores. Em 1.950, enquanto em todo interior da Bahia existiam apenas
1.790 leitos hospitalares, eles passavam dos 12.300 somente na capital
paulista.
Emprego, salários mais elevados,
direitos trabalhistas, maior infraestrutura hospitalar e educacional compunham
um cenário deveras atrativo. Paulatinamente, ganhava fôlego a ideia de que a
vida em São Paulo seria "mais fácil", ainda mais se comparada com as
difíceis circunstâncias que os trabalhadores rurais nordestinos enfrentavam no
período.”
[FONTES, 2008, p. 48]
Em sua exposição de longa duração, intitulada:
“Migrar: experiências, memórias e identidades”, existente desde a abertura do
Museu (2014) há um espaço quase imperceptível, fazendo uma breve menção à
migração nordestina, ocupando uma parede com aproximadamente, 3m de altura por
2m de largura (fig. 03-04). Enquanto a fig. 03 é uma representação da parede
expositiva, dedicada à migração interna, com textos apresentados em: português,
inglês e espanhol, a fig. 04, apresenta em destaque uma mulher e um grupo de
crianças, possivelmente se trate de uma mesma família, acomodada em beliches da
antiga Hospedaria. Trata-se de um espaço com poucas informações, havendo a
inexistência de legendas explicativas nas reproduções fotográficas, que
pudessem apresentar dados como: autoria da imagem, nome da família ou de
indivíduos retratados, ano de produção da iconografia, em que ramo as pessoas
retratadas esperavam ser inseridas no mercado de trabalho, conforme
evidenciamos a seguir:
Fig. 03 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2019.
Fig. 04 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2019.
Um problema que se repete na fig. 05 (que retrata trabalhadores
nacionais no setor de encaminhamento ao trabalho, na década de 1940), que,
embora esteja identificada neste estudo, no ambiente expositivo ela se encontra
completamente descaracterizada, inexistindo qualquer informação sobre ela. Um
entrave que dificulta o entendimento do contexto no qual essa imagem foi
produzida, ou seja, o momento em que trabalhadores nacionais se candidatavam às
vagas de emprego, assim como acontecia com a mão de obra estrangeira.
Fig. 05 – (MOURA; PAIVA, 2008, p. 67).
Os trabalhadores internos também chegam a ser
valorizados por conta da diminuição da vinda de imigrantes, em decorrência da
Primeira Guerra Mundial (1914-18), um ponto que também não é mencionado na
exposição. Outro fator a ser considerado foi a atribuição aos trabalhadores
nordestinos um caráter ordeiro, perpetuando um discurso de valorização do
trabalhador interno (realizado pelo governo paulista), em detrimento dos
imigrantes, que atuavam politicamente, promovendo greves em fábricas, tendo por
interesse a melhoria das condições salariais e de trabalho, baseando-se nas
ideias anarquistas e comunistas, presentes na primeira metade do século XX:
“Outro elemento que contribuiu para a
reavaliação do trabalhador nacional refere-se à diminuição do fluxo imigratório
para São Paulo após o término da I Guerra Mundial. Mesmo enfrentando crises
periódicas, a lavoura cafeeira necessitava constantemente de braços.
Naquelas circunstâncias, o trabalhador nacional foi visto como um substituto
natural ao braço imigrante. Assim, a partir dos anos 1920, a entrada de
nacionais na Hospedaria tendeu a crescer na proporção inversa do refluxo
imigratório. Em 1928 a entrada dos nacionais foi superior a dos imigrantes.”
[MOURA; PAIVA, 2008, p. 115]
Outra questão que poderia ser abordada no MI seria
o preconceito, promovido em relação aos migrantes nordestinos, sendo estes
chamados pejorativamente de “baianos”, promovendo uma articulação com o público
espontâneo, e também, com as disciplinas desenvolvidas em sala de aula (como
História e Geografia) já que a maior parte de seus visitantes é composta por
alunos, das redes pública e particular de ensino, problematizando a política
imigratória de outrora, a fim de promover um embranquecimento da população
brasileira, visando assim, a “melhoria da raça” e como os trabalhadores
internos foram estigmatizados (em fins do século XIX e no século XX), sendo
alvos de preconceitos por agentes governamentais, existentes na antiga
Hospedaria e no âmbito do estado Paulista.
Devemos ter em mente que, atualmente, ainda há um
preconceito sobre a população nordestina, residente na cidade de São Paulo, que
deve ser combatido, com o objetivo de respeitar as diferenças regionais e
culturais destes trabalhadores nacionais. Um lugar em potencial para se
realizar esta tarefa é justamente dentro de instituições museológicas como o MI,
por ter sua importância como um lugar de memória e que pode difundir, por meio
dos vestígios documentais, seja iconográfico, seja textual a ideia de
tolerância e respeito em relação aos nordestinos e seus descendentes, que se
encontram no estado de São Paulo ou na cidade paulistana, pensando nas
reflexões do historiador francês Pierre Nora de valorização de componentes do
passado, tendo em vista um futuro incerto:
“O
sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação
com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao
mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do
memorável.”
[NORA, 1993, p. 12].
Por meio deste estudo foi possível exaltar a
importância da migração interna, com a finalidade de obter melhores condições
de vida, por meio de melhores oportunidades de emprego, de saúde e educação.
Condições que não eram possíveis de se encontrar no Nordeste brasileiro e que,
nos dias atuais, persistem as diversas formas de exclusão social, impedindo o
desenvolvimento de muitos trabalhadores nordestinos.
Como foi visto neste texto, o Museu da Imigração
também é um Museu de Migrantes (Fig. 06 mostra a fachada do MI nos dias atuais)
e deve realizar com mais rigor o resgate da memória da migração interna, que
serviu para substituir mão de obra estrangeira nas lavouras de café e nas indústrias
que se estabeleceram na capital Paulista. Isto é, trata-se de um espaço onde
podem coexistir várias memórias sociais que, de acordo com Nora, são múltiplas,
em decorrência da existência de vários grupos sociais:
“A
memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer, como Halbwachs o fez,
que há tantas memórias quanto grupos existem, que ela é, por natureza, múltipla
e desacelerada, coletiva, plural e individualizada” (NORA, 1993, p. 9).
Fig. 06 – Fonte: Arquivo pessoal. Ano: 2015.
Por ser uma instituição museológica, ela também é
um lugar de memória e, por isso, torna-se imperativo que haja um resgate maior
dessa memória nordestina, por intermédio de ações educativas e de exposições
que ensinem sobre essa temática, com o objetivo de estimular o respeito para
com essa comunidade e seus descendentes, contribuindo para que seja perpetuada
uma nova imagem do MI, como um reduto de trabalhadores nacionais.
Referências
Luciano Araujo Monteiro é Historiador, formado pela
UNIFESP, mestrando pelo departamento de História da UNIFESP e pós-graduando em
Gestão Pública pela UNIFESP. Atua como Assistente de Gestão e Políticas
Públicas pela Autarquia Hospitalar Municipal de São Paulo (AHM).
Deixo aqui meu profundo agradecimento aos
profissionais do Museu da Imigração pelas informações prestadas.
FONTES, Paulo Roberto Ribeiro. Um Nordeste em São Paulo: trabalhadores migrantes em são Miguel Paulista (1945-66). Editora FGV. Rio de Janeiro: 2008.
MOURA, Soraya; PAIVA, Odair da Cruz. Memorial do Imigrante: a imigração no
Estado de São Paulo. Imprensa Oficial. São Paulo:
2008.
NORA, Pierre. Entre Memória e
História: a problemática dos lugares. Projeto
História, São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 7-28.
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