A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO INSTRUMENTO
DE APLICAÇÃO E VALORIZAÇÃO DA CULTURA NEGRA NO ENSINO DE HISTÓRIA
Refletir
a ciência histórica como disciplina escolar, bem como os processos de ensino
envolvem indagações e desafios múltiplos. Tratar das experiências
passadas e refleti-las em aula procurando estabelecer uma visão crítica e sem
neutralidade por parte do professor, coloca-se como um desafio à parte no
contexto social contemporâneo.
Dentro
da complexidade constitucional do qual a sociedade brasileira é feita, pensar
os sujeitos dentro das dinâmicas sociais envolvem despendimentos e referências
múltiplas. Conforme aponta Chimamanda Ngozie Adiche em seu célebre vídeo “O
perigo de uma história única”, adotar um modelo de explicação e interpretação histórica
onde apenas uma visão seja contemplada pode ser algo perigoso, sobretudo,
dentro de uma sociedade que se constitui de sujeitos sociais variados e de
referenciais distintos.
“Cabe
ao professor, utilizando-se dos métodos históricos aproximar o aluno dos
personagens concretos da história, sem idealização, mostrando que gente como a
gente vem fazendo história” (Pinsky; Pinsky, 2016)
É
partindo desse princípio que se proporá uma reflexão observando a necessidade
de refletir um ensino de história onde os sujeitos sociais sejam pensados
dentro de suas especificidades, dotados de características e subjetividades
próprias. Para tanto as discussões apresentarão uma vertente racial pensando a necessidade
de buscar, sobretudo, após a promulgação da Lei 10.639 as várias possibilidades
de trabalhar com referências da população negra em âmbito escolar.
Diante
(disso) do apontado, a proposta na qual essa construção se pautará ancora-se na
questão do modo como as relações étnico raciais tem sido trabalhadas no
ambiente escolar, e de que maneira o entendimento sobre Patrimônio Imaterial,
voltando nossos olhares para as práticas culturais da população negra que já são
registradas, pode ser um facilitador no processo de trabalho e valoração da
cultura afro brasileira no ensino de história. Para tanto, o caminho escolhido
para o intento, é o da aproximação do ensino de história com as várias
manifestações que compõem o acervo de Patrimônio Imaterial.
O
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, traz inserido dentro da
categoria Patrimônio Imaterial manifestações distintas que englobam livros de
Registro distintos dentre eles: Celebrações, Saberes, Formas de Expressão e Lugares.
O que se observa como ponto comum é a extrema aproximação com a comunidade
(sujeitos sociais), portanto fica explicito que se refere as práticas
históricas dos indivíduos que marcaram determinado tempo, permaneceram
enraizadas em âmbito social ao longo do tempo e por tal fato são passíveis de
proteção estatal, já que se referem diretamente a própria concepção de formação
social.
“Com
a publicação do Decreto nº 3.551, em 4 de agosto de 2000, instituiu-se o
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou-se o Programa Nacional
de Patrimônio Imaterial, os quais vêm implementando políticas públicas voltadas
para o reconhecimento, a valorização e o apoio sustentável aos chamados bens
culturais de natureza imaterial [...] Conforme define o artigo 2º da
Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ocorrida em
Paris, em 2003, a expressão patrimônio imaterial designa as práticas,
representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os
instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados – que as
comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte
integrante de seu patrimônio cultural. Este patrimônio cultural imaterial, que
se transmite de geração em geração, é constantemente recriado pelas comunidades
e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua
história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo
assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana”
(CURY, 2004, p. 373).
Tão
importante quanto registrar um bem imaterial é estabelecer medidas eficazes de
proteção e vislumbre das modificações e eventuais transformações pelas quais
esse bem passa. Tendo em vista a divulgação e difusão cultural das práticas que
estabelecem ligação a identidade de cada um, a educação patrimonial é a ponte
pela qual o patrimônio imaterial alcança o ambiente escolar e por isso
estabeleceu-se por decreto em 2004 a necessidade de promover e fomentar a
promoção do patrimônio cultural brasileiro em âmbitos distintos.
Apontados
alguns instrumentos necessários à compreensão da temática abordada, alguns
indícios começam a se apontar como caminho de compreensão da proposta inicial. Dentro
da categoria patrimônio imaterial, encontram-se inseridas uma gama de
manifestações culturais que estabelecem relação com a população afro
brasileira. Em uma breve consulta ao site do Iphan, destacam-se: Samba de roda
do recôncavo (2014); Jongo no Sudeste (2005); Ofício das baianas de acarajé
(2005); Tambor de crioula do Maranhão (2007); Ofício dos mestres de capoeira
(2008); Roda de capoeira (2008). Para além desses, ainda se encontram tombados
vários terreiros de candomblé no Brasil, espaços que são primordiais para
identificação e compreensão de uma série de práticas que estabelecem relação
intrínseca com várias das cosmovisões africanas transplantadas no seio social
brasileiro desde o período colonial mantendo-se inseridas na dinâmica social
até a contemporaneidade. Dentre destes, é possível apontar em Salvador (BA): Ilê
Iyá Omim Axé Iyamassé (Gantois); Axé Opô Afonjá; Casa Branca do Engenho Velho;
Ilê Maroiá Láji (Alaketo); Bate-Folha; Ilê Axé Oxumaré. Na cidade de Itaparica
(BA) o terreiro Omo llê Agboulá, em Cachoeira (BA) Zogbodo Male Bogun Seja Unde
(Roça do Ventura) e em São Luís do Maranhão a Casa das Minas Jeje.
Como
supracitado as manifestações do patrimônio imaterial registradas em âmbito
nacional que trazem referenciais diretos da cultura afro brasileira e africana
já são uma realidade a mais de duas décadas em nosso país, todavia, o que pode
se colocar como um desafio é de que modo inserir essa categoria no ensino de
história. O trabalho com a perspectiva patrimonial sobretudo no que se refere a
valoração cultural afro brasileira, envolve munir-se de conceituações básicas a
respeito da discussão historiográfica patrimonial, os aspectos culturais de
nossa formação enquanto sociedade, manifestações culturais afro brasileiras e
as formas de enfrentamento ao racismo como um estruturante social, temáticas
essas que já são uma realidade dentro dos cursos de graduação em história.
Dessa
maneira para a apropriação dessas temáticas e uma posterior aplicação em âmbito
escolar, o primeiro passo é entrar em contato com os dossiês que são elaborados
para o registro desses bens, que em sua grande maioria já são disponibilizados
online no site do IPHAN. Entrar em contato com esse material e utilizá-los como
recurso didático já se apresenta como um passo inicial fundamental, uma vez
que, esses dossiês trazem em seu corpo constitucional um histórico completo e
detalhado sobre a manifestação registrada e para além disso, envolve uma
participação ativa da comunidade detentora que faz uma descrição pormenorizada
de como se dá a manifestação. Outro passo importante e fundamental é acessar os
guias básicos de Educação patrimonial disponibilizados também pelo site do
IPHAN, onde contém as diretrizes, sugestões e conceitos a serem abordados na
educação patrimonial.
“A
Educação Patrimonial consiste em provocar situações de aprendizado sobre o
processo cultural e seus produtos e manifestações, que despertem nos alunos o
interesse em resolver questões significativas para sua própria vida, pessoal e coletiva.
” (HORTA, GRUNBERG, MONTEIRO, p. 6).
O
conceito fundamental a ser trabalho na educação patrimonial é justamente a
concepção de patrimônio cultural e a partir deste desenvolver outros
referenciais que o compõe, tais como: identidade, alteridade, memória coletiva,
memória individual, lembrança, patrimônio cultural, tradições, comunidades
tradicionais e o próprio conceito de História, já que a concepção de história
como disciplina ainda é limitadora.
Um
tema que pode servir de exemplo para ser trabalhado, tanto na educação
patrimonial quanto na história afro-brasileira, é a manifestação das Congadas, que
são registradas como patrimônio imaterial na cidade de Uberaba interior de
Minas Gerais; além de tratar de um tema local, para que os alunos possam
compreender melhor o contexto social que estão inseridos, elas evidenciam uma manifestação
afro-brasileira que representa a coroação do Rei do congo, aos moldes do que
acontecia em África. Através dessa é possível conhecer alguns aspectos da
história dos negros no Brasil e perceber a diversidade étnica que compõe a
população brasileira.
Outro exemplo, a ser citado, são os terreiros de
candomblé tombados como patrimônio imaterial brasileiro, esses resguardam
práticas que se referem diretamente ao modo como a população negra passou a
organizar seus referenciais religiosos e cosmovisões africanas em espaços auto organizados.
Por meio da história e difusão do conhecimento destas, pode-se demonstrar a
prática religiosa afro-brasileira como influenciadora em manifestações
musicais, artísticas e sociais que se inserem no social.
Em um ambiente de preconceito e estereótipos, a
educação patrimonial pode contribuir para que um cenário de preconceitos e
distorções, se transformem em compreensão e convívio com práticas religiosas e
culturais de suma importância para a formação identitária brasileira. E para
além disso, trabalhar em prol do fortalecimento da luta antirracista que
cotidianamente se fortalece no seio social.
Observadas
todas as manifestações apontadas, bem como a história da população negra na
sociedade brasileira, tem-se a noção que as práticas culturais foram e ainda
são sinônimo de resistência desse grupo étnico, e para além disso, um modo de manter
as suas subjetividades vivas em um ambiente onde essas são tolhidas em vários
momentos em virtude do estabelecimento de um padrão único como modelo, dentro
de uma perspectiva eurocentrada.
Como
previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), trabalhar dentro de um
aspecto plural da sociedade bem como de sua constituição é fornecer aos
envolvidos a própria noção de ser social já que:
“O
tema Pluralidade Cultural oferece aos alunos oportunidades de conhecimento de
suas origens como brasileiros e como participantes de grupos culturais
específicos. Ao valorizar as diversas culturas presentes no Brasil, propicia ao
aluno a compreensão de seu próprio valor, promovendo sua auto-estima como ser
humano pleno de dignidade, cooperando na formação de autodefesas a expectativas
indevidas que lhe poderiam ser prejudiciais. Por meio do convívio escolar,
possibilita conhecimentos e vivências que cooperam para que se apure sua
percepção de injustiças e manifestações de preconceito e discriminação que
recaiam sobre si mesmo, ou que venha a testemunhar — e para que desenvolva
atitudes de repúdio a essas práticas.” (PCN 1997, p.137)
Dentro
dessa logística. Em um país
multifacetado como o Brasil, é fundamental que a escola ofereça um ensino que
permita com que os alunos conheçam e compreendam tal diversidade, é desta
forma, que a instituição escolar coopera para quebrar preconceitos e violências
diversas, sejam elas de ordem étnica, religioso ou racial. A importância de um ensino plural se evidencia
no momento em que não prioriza uma vertente única para explicação do sujeito
social enquanto coloca terceiros no porão histórico. Somente dessa maneira é
que se desperta a noção de constituições múltiplas e diferenciais, que são
passíveis de respeito dentro de suas diferenças e desperta-se a noção de ser
social dentro das diversas individualidades e particularidades que compõem o
todo.
REFERÊNCIAS:
Maycon
Junio Gonçalves e Karine Rodrigues Firmino são Discentes do Curso de História
da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
Adichie, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. In: TED Ideas worth
spreading. 2009. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt
Brasil.
Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
curriculares nacionais : pluralidade cultural, orientação sexual/ Secretaria de Educação Fundamental. –
Brasília: MEC/SEF, 1997.
CURY,
Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais.
3. ed. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina;
MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia Básico de Educação Patrimonial.
Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_patrimonial.pdf.pdf
PINSKY, J. PINSKY, C. B. Por
uma História prazerosa e consequente. KARNAL, L. (org.).História na sala de
aula: conceitos, práticas e propostas. 6. ed., São Paulo: Contexto, 2016.
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